A história de Fernando Lugo, relatada em detalhe no livro, "The Priest of Paraguay: Fernando Lugo and the making of a nation" (Ed. Zed Books, 176 páginas), de Hugh O’Shaughnessy e Edgar Venerando Ruiz Diaz, que também retrata um vívido quadro de uma realidade compartilhada por outros países latino-americanos. A análise é do padre jesuíta Michael Campbell-Johnston, publicada no sítio Thinking Faith, o jornal eletrônico dos jesuítas britânicos, 22-09-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS
Quase desde o seu início, o Paraguai pareceu ser uma nação condenada. Desde a sua independência em 1811, sua história tem sido dominada por longos períodos de instabilidade política e guerras devastadores com seus vizinhos. Na metade da década de 50, ele se viu sob a brutal ditadura de 36 anos de Alfredo Stroessner, que, como afirmam os autores, "deixou o Paraguai como uma casa em apodrecimento". Os 10% mais ricos da população têm 40 vezes a renda dos 10% mais pobres, enquanto o 1% dos proprietários de terra mais ricos detinham 80% das terras. Os autores mostram claramente como essa situação se manteve por meio de uma combinação de trapaça, corrupção e terror, com um partido governante (os Colorados) que deteve o poder durante 61 anos. O regime foi reconhecido e apoiado por nações industrializadas preocupadas com a proteção da prosperidade de seus mercados, especialmente o de armas.
Esse foi o mundo em que Fernando Lugo cresceu. Nascido em 1951 em um vilarejo do interior, filho de um ferroviário e de uma professora, ele testemunhou e experimentou a injustiça desde sua infância. Ele tinha 11 anos quando seu pai, Guillermo, foi preso e submetido a afogamento simulado, um processo que a política paraguaia aprendeu com os EUA e que foi formalmente ensinado posteriormente pela Escola das Américas, estabelecida na Zona do Canal do Panamá. Isso provocou sérias complicações nos rins de Guillermo e causou a sua morte. Os três irmãos de Fernando também foram torturados pela polícia de Stroessner, e a família pressionou-o a esquecer quaisquer ideias de entrar para a política. Pelo contrário, em 1970, ele entrou para o noviciado paraguaio dos Missionários do Verbo Divino.
Os autores traçam, em detalhe, a formação religiosa de Lugo e sua gradual introdução à então recente teologia da libertação. Um período crucial nesse processo foi o ano em que ele passou no Equador, logo após sua ordenação, durante o qual ele se sentiu sob a influência do bispo Leonidas Proaño, que, no ano anterior, havia sido preso com outros 16 bispos por "atividades subersivas". Como Lugo disse depois, "eu me sentia orgulhoso de que um dos bispos presos em Riobamba pelos militares fosse o paraguaio Dom Bogarín Argaña", que durante anos trabalhou entre os agricultores exigindo a reforma agrária. Porém, quando Lugo retornou para sua terra natal, Stroessner fez saber aos superiores do padre que eles deveriam enviá-lo para fora do país. Então, ele foi enviado à Universidade Gregoriana de Roma, onde fez especialização em espiritualidade e doutrina social da Igreja.
Depois de seu retorno ao Paraguai, em 1994, ele foi indicado bispo de San Pedro del Ycuamandeyú, uma das regiões mais pobres do país. Ao longo dos 10 anos subsequentes, ele se tornou um defensor dos pobres rurais e das populações indígenas, trabalhando por meio das comunidades eclesiais de base (cujo número na diocese mais do que dobrou), vivendo em uma pequena casa indistinguível de qualquer outra, usando a língua guarani e viajando por toda a diocese em uma motocicleta. Como era de se esperar, ele se tornou gradualmente uma das poucas vozes que podiam falar com autoridade em defesa dos pobres, e um grande número de grupos políticos foram ao seu encontro e começaram a vê-lo como um possível líder da oposição e como candidato presidencial. Lugo resistiu ao chamado por muito tempo, mas finalmente anunciou sua candidatura no Natal de 2006. Ele foi eleito dois anos depois, com uma margem confortável, abandonou seus votos religiosos, mas se viu diante dos problemas intimidantes de tentar "arrastar o Paraguai para fora do lodaçal em que a história o colocou".
O valor desse livro muito bem pesquisado é que ele oferece o pano de fundo necessário para se compreender o grande desafio que Fernando Lugo enfrenta agora. E sua história não é de relevância só para a situação do Paraguai. Lugo desfruta a companhia de Lula, do Brasil, Chávez, da Venezuela, Morales, da Bolívia, e Correa, do Equador, todos engajados na luta por justiça social que poderia transformar a América Latina e dar uma nova esperança e vida a seu povo. Pode haver desacordos com relação a alguns dos métodos empregados ou mesmo a alguns dos objetivos perseguidos, mas muitos na América Latina sentirão que não são as nações industrializadas e desenvolvidas que devem determiná-los: pelo contrário, eles devem esperar que essas nações apoiem suas tentativas de pôr em ordem as situações intoleráveis. Com esperança, esse livro irá avançar em uma compreensão crescente do grande desafio que se coloca diante dos latino-americanos.