15/04/2009

Cardeal Carlo Maria Martini

Páscoa: explosão de luz no mundo


O cardeal Carlo Maria Martini, em artigo para o jornal Il Sole-24 Ore, 12-04-2009, reflete sobre o significado da Páscoa a partir do seu fato originário. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS




O que é essencial para a Páscoa? Onde está o fato originário que os fiéis celebram? Quem entrou, nestes dias, nas igrejas cristãs e assistiu a como foram celebradas nelas as funções litúrgicas nos diversos dias da Semana Santa pode ter tido a impressão de um repetir-se de gestos, de ritos, de orações, em que se tornava difícil indicar o tema fundamental, entender onde estava a sua unidade.

Muitos, de fato, são os eventos relembrados nesses dias, em que se percorreu o caminho da última semana de Jesus em Jerusalém, desde o solene ingresso na cidade, revivido no "Domingo das Palmas", até a sua captura, à paixão e morte, à descoberta do sepulcro vazio e às suas aparições aos discípulos. Frente a essa riqueza de eventos, lidos também à luz de uma longa série de outras leituras bíblicas, perguntamo-nos: qual é o fato central, originário, no qual tudo isso junto encontra a sua origem e a sua explicação?

Esse fato não foi descrito por ninguém, não foi vivido por ninguém. A liturgia romana nos diz, no canto solene que precede a função da noite de Páscoa: "Só tu, noite feliz, soubeste a hora em que o Cristo da morte ressurgia". O que ocorreu nessa hora desconhecida, na obscuridade do túmulo de Jesus? Podemos compreender algo desse evento olhando os efeitos desse mistério com os olhos da fé.

O Espírito Santo desceu com toda a sua potência divina no cadáver de Jesus. Tornou-o "espírito vivificante" (cf. Carta de São Paulo aos Romanos 1, 4), deu-lhe a capacidade de se encontrar presente em todo o lugar, em qualquer lugar e em qualquer tempo da história.

Tornou-se como uma explosão de luz, de alegria, de vida. Lá onde havia um corpo morto e um túmulo sem esperança, iniciou-se uma iluminação do mundo que ainda dura até hoje.

Quando Jesus dizia, no fim do Evangelho segundo Mateus: "Estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo", entendia essa presença de ressuscitado, dessa força de Deus operante em Jesus que qualquer pessoa pode sentir dentro de si, contanto que abra os olhos do coração. Esse espírito não se manifesta com parcimônia, mas com amplitude e liberalidade.

Hoje, repropondo o grito da Páscoa, a Igreja dirige ao mundo um anúncio de esperança. Esse anúncio se refere a todos, toca os indivíduos, as comunidades, as sociedades. Todo homem, toda mulher dessa terra pode ver o Ressuscitado, se se permitir buscá-lo e se deixar buscar. Começa aqui a história da Igreja, que é, sobretudo, história das consequências desse dom. Os homens talvez podem utilizar mal esse dom ou até se opor a ele, mas, na realidade, ele faz o seu caminho na história, cria as multidões de Santos, sejam conhecidos ou desconhecidos. Permite que qualquer um que o deseje sinceramente entre nas intenções de Cristo, no seu amor aos pobres, na sua luta pela justiça, na sua dedicação por cada pessoa, no seu espírito de liberdade, de humildade, de adoração e de oração. Quem olha o mundo de hoje com os olhos da fé, reconhece nele todos os horrores e as distorções, mas vê também o Espírito operando para salvar esse mundo.

Mas quem reconhece hoje a mudança que ocorreu na história? Quem sente a presença do Ressuscitado que nos acompanha?

Quem tem uma fé plena em Jesus, quem se volta para Deus com todo o coração, quem se liberta da escravidão do sucesso e do dinheiro, quem se converte da tristeza e da mesquinhez a uma visão ampla do universo, aberta para a eternidade. Devemos aceitar que o amor de Deus dissolve o medo, que a graça perdoa o pecado, que a iniciativa de Deus vem antes de todo esforço nosso e nos reanima, nos recoloca de pé em toda queda. A fé na ressurreição não é fuga do mundo, pelo contrário, nos faz amar o tempo presente e a terra, é capacidade de viver a fidelidade à terra e ao tempo presente na fidelidade ao céu e ao mundo que deve vir.

Há tempos em que esse reconhecimento é particularmente difícil: são os tempos dos grandes infortúnios, das catástrofes que atingem muitas pessoas, particularmente as crianças. Mas também aqui, para quem sabe ler com os olhos da fé, não falta uma presença do Ressuscitado.

Justamente agora, recebi das zonas onde ocorreu o terremoto em Abruzzo uma mensagem que é mais ou menos assim: "Desde os acampamentos de tendas (...) os mais sinceros votos. O Senhor que veio curar as feridas dos corações despedaçados nos escolheu para que o ajudássemos. Seja esta a nossa verdadeira alegria.

Um fraterno abraço".

12/04/2009

Entrevista - Pe. Timothy Radcliffe

'A nossa lealdade à Igreja requer que sejamos críticos'


Deixar-se surpreender por Cristo, como Maria Madalena. Ter mais coragem e menos medo para debater questões difíceis dentro da Igreja. Recusar quaisquer "polarizações simplistas" da Igreja entre esquerda e direita. Mostrar a nossa lealdade à Igreja sendo críticos, com amor e humildade. Assumir a nossa vocação de aprender a amar a Deus – todos, homens ou mulheres, gays ou heterossexuais.

Em pleno Domingo de Páscoa, eis a proposta e o desafio evangélico apresentado por Timothy Radcliffe, teólogo e padre dominicano inglês. Nesta entrevista, concedida por e-mail com exclusividade para a IHU On-Line, o ex-Mestre Geral da Ordem dos Pregadores, ou Dominicanos, fala sobre os atuais desafios da Igreja e as dificuldades de se apresentar o mistério da Páscoa à sociedade de hoje.

Nascido na Inglaterra, Timothy Radcliffe é teólogo e padre dominicano. Em 1992, foi eleito Mestre Geral da Ordem dos Dominicanos, o primeiro membro da província inglesa a ser eleito para o cargo desde a fundação da ordem, em 1216. Antes disso, havia sido prior provincial da Inglaterra e presidente da Conferência dos Superiores Religiosos de Inglaterra e Gales, tendo lecionado Sagrada Escritura na Universidade de Oxford. Em 2001, após deixar o cargo de mestre geral da ordem, voltou a lecionar na universidade. Atualmente, é membro da comunidade dominicana em Blackfriars, Oxford, na Inglaterra. Presidente do International Young Leaders Network, Racdliffe foi um dos fundadores do Las Casas Institute, que aborda questões referentes à ética, política e justiça social, ambos desenvolvidos na Universidade de Oxford.



IHU On-Line – O que o tempo pascal tem a dizer aos cristãos com relação ao mundo e à Igreja de hoje?

Timothy Radcliffe – Hoje, vemos todos os tipos de sinais de morte ao nosso redor. A recém tivemos o terrível terremoto na Itália. Há mortes de homens-bomba suicidas em muitos lugares. Estamos ameaçados com mortes em massa se não evitarmos a crise ecológica à nossa frente. Podemos enfrentar a morte com liberdade, acreditando que ela não tem a última vitória. Muitas pessoas temem a morte. Woody Allen disse que não tem medo da morte, ele só não gostaria de estar por perto quando ela acontecer! Mas nós acreditamos que a morte não tem a última palavra.

"Todos, homens ou mulheres, gays ou heterossexuais,
têm a mesma vocação de entrar no mistério da Trindade"


IHU On-Line – Como é possível apresentar os mistérios da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo em uma linguagem compreensível para a sociedade contemporânea?

Timothy Radcliffe – O Império Romano foi convertido pela coragem dos mártires. Nós também temos os nossos mártires. Oscar Romero anunciou o Evangelho corajosamente, sabendo que isso o levaria à sua morte. É verdade que, durante o genocídio em Ruanda, muitos cristãos falharam em dar testemunho, mas não devemos nos esquecer dos muitos que ousaram aceitar a morte porque recusaram o ódio. E eu conheci muitas pessoas que enfrentaram a morte com alegria e com testemunho de esperança. Um jovem seminarista com seus 20 anos, Andrew Robinson, descobriu que estava morrendo de câncer pouco tempo antes de ser ordenado. O arcebispo de Birmingham teve a brilhante ideia de pedir-lhe que mantivesse um diário, para que ele pudesse compartilhar o que estava vivendo e morrendo com os seus amigos. Isto foi o que ele escreveu poucos dias antes de sua morte: "Minha doença desempenhou uma parte substancial na minha jornada para Deus, para a paz e para a liberdade. A jornada não é de forma alguma fácil, mas quando você vai rumo à luz no fim do túnel, e você sente o seu calor, você saboreia a sua paz e a sua liberdade, você ouve o rumor das multidões de anjos saudando-o em louvor do Deus que nos atrai para a luz" ("Tears at Night Joy at Dawn: Journal of a Dying Seminarian", Editora Stoke on Trent, 2003, p.73).

IHU On-Line – Em sua opinião, quais são os principais teólogos que estão respondendo a esses desafios e possibilidades da atualidade?

Timothy Radcliffe – Há uma grande gama de teólogos hoje, desde o nosso querido dominicano Gustavo Gutiérrez, que continua sendo testemunha da esperança, até teólogos mais jovens, como o norte-americano Robert Barron. Na Inglaterra, o arcebispo de Canterbury, Rowan Williams, é uma testemunha maravilhosa e criativa do Evangelho.

IHU On-Line – Como a Paixão de Cristo se expressa nas "paixões" que vivemos hoje no mundo (crise financeira e ecológica, desemprego, violência etc.) e na Igreja (o caso dos lefebvrianos, a excomunhão no caso do aborto da menina do Recife, a questão dos preservativos na África etc.)?

Timothy Radcliffe – Eu acredito que a crise financeira tem suas raízes em um sistema econômico que cultivou a ganância, criando divisões ainda mais severas entre ricos e pobres. Vivemos na ilusão de que a ganância movimenta o mercado, que cria prosperidade, que transborda para enriquecer a todos. Isso é simplesmente falso. O mercado financeiro, com o dinheiro sendo vendido e revendido, também se tornou ainda mais distante da realidade. Hoje, aterrissamos de novo no mundo real com uma colisão. Este é o momento mais doloroso, especialmente para as pessoas mais pobres. Devemos duramente tentar torná-lo um novo começo, no qual construamos um sistema econômico que seja enraizado na realidade, no valor real do que é comprado e vendido e no valor real do trabalho das pessoas ao produzir isso. Então, se agirmos com coragem, em vez de apenas tentar restaurar o status quo, poderemos então torná-lo um novo começo. Nós, cristãos, acreditamos que toda crise pode ser frutífera.

"Precisamos discutir questões complexas com mais coragem. Para isso, devemos recusar qualquer polarização simplista da Igreja entre esquerda e direita"

Com relação à crise de comunicação da Igreja nos casos que você mencionou, devemos fazer uma distinção entre a) os erros feitos pela Igreja e b) a forma em que eles foram mal informados e exagerados pela imprensa, que muitas vezes só fica muito feliz ao caçoar da Igreja. Cada um desses casos apresenta diferentes desafios. A readmissão do bispo lefebvriano que negou amplamente o Holocausto foi devido a uma falha de comunicação dentro do Vaticano. Isso envergonhou profundamente o Papa, que escreveu uma carta muito comovedora e humilde a todos os bispos da Igreja, e isso deve marcar uma nova fase na relação dele com o colégio dos bispos em todo o mundo.

Eu estava na África no momento da excomunhão da menina depois de um aborto e distante dos meios de comunicação comuns, e por isso não fui capaz de acompanhar o caso. Ele foi claramente tratado de uma forma que produziu um escândalo e prejudicou a reputação da Igreja. Eu compreendo que o Vaticano tenha feito, ao final, uma declaração que foi altamente crítica à decisão de excomungar a menina, mas isso quase não foi publicado. A misericórdia sempre deve triunfar.

Finalmente, houve a questão dos preservativos na África. Da forma como eu compreendo, o Papa fez uma afirmação que não tinha a ver com fé ou moral, mas sobre se é ou não verdade que o uso dos preservativos faz com que a Aids se difunda mais ou não. Essa é uma questão complexa. Alguns cientistas concordariam com o Papa, enquanto muitos não. Portanto, não foi uma declaração formal de uma posição à qual os católicos deveriam concordar, já que não foi sobre fé ou moral, mas apenas no contexto em que um julgamento moral deveria ser feito. Foi lamentável e produziu muita confusão. Mas, se questionarmos qualquer pessoa durante muito tempo, especialmente quando ela está cansada, então quem de nós às vezes não escolheria palavras que são lamentáveis? Eu fiz muitas afirmações à imprensa sob pressão e às vezes não escolhi bem minhas palavras e por isso, aqui, eu tenho a mais profunda simpatia com o Papa!

IHU On-Line – Qual a sua opinião sobre os atuais problemas da Igreja nestes dias? Como os cristãos católicos podem vivê-los e compreendê-los à luz da Páscoa?

Timothy Radcliffe – Não há nada novo no que estamos vivendo hoje. A Igreja sempre cometeu erros e não escolheu as melhores palavras. Somos o corpo de Cristo, mas também somos uma comunidade de pessoas falíveis, que cometem erros, que são mal interpretadas e assim por diante. São Pedro mesmo foi confrontado por São Paulo em questões de fé. Então, temos que aceitar que a providência de Deus pode agir mesmo por meio desses momentos dolorosos. Isso não é nem próximo da profundidade da crise das condenações da Modernidade há centenas de anos. E nem se compara com a crise da Sexta-Feira Santa!

Em segundo lugar, somos todos membros da Igreja. Devemos usar nossa voz para compartilhar a nossa fé. Às vezes, a nossa lealdade à Igreja requer que sejamos críticos. Mas devemos ser muito amorosos e humildes, sabendo que nós também não temos todas as respostas. Dom Robert Lebel, do Canadá, disse que os católicos que criticam a Igreja, que são "inquebrantáveis na sua pertença a essa mesma Igreja, são as testemunhas das quais ela tem necessidade para progredir. Estas testemunhas são as mais eficazes porque são de dentro. Elas são da Igreja, elas são a Igreja que se autocritica para ressituar incessantemente a sua dupla fidelidade a Cristo e ao mundo no qual ele se encarnou".

"O Papa escreveu uma carta muito comovedora e humilde a todos os bispos.
Isso deve marcar uma nova fase nessa relação"


IHU On-Line – Até que ponto o Concílio Vaticano II deu respostas à nossa sociedade moderna? É necessário um Vaticano III para uma atualização da Igreja?

Timothy Radcliffe – Eu não sei se precisamos de um Vaticano III ou não. O que nós precisamos é discutir questões sensíveis e complexas com mais coragem e com menos medo. O Papa muitas vezes destacou a nossa fé na razão, e devemos mostrar isso ousando debater questões difíceis. Para que isso ocorra, devemos recusar qualquer polarização simplista da Igreja entre esquerda e direita, tradicionalistas, conservadores [e progressistas]. Devemos discutir as questões racionalmente, à luz dos Evangelhos e do magistério da Igreja, sem representar partidos políticos, confiantes que o Espírito Santo pode nos guiar mais profundamente no mistério da nossa fé. Não devemos simplesmente rejeitar qualquer afirmação como falsa ou absurda. Mesmo se ela não estiver correta, devemos nos atrever a procurar pela semente de verdade que ela contém e compreender a intuição que levou as pessoas a afirmarem-na.

IHU On-Line – Como a Ressurreição pode ser vivida por todos os sofredores e marginalizados do mundo, especialmente dentro da própria Igreja, como os gays e as mulheres que sentem o chamado de Deus?

Timothy Radcliffe – Para muitas pessoas na Igreja, este é um tempo de dor, quando Deus parece estar ausente, e o futuro parece desolador, e talvez elas se sintam mal acolhidas e depreciadas. Mas deixemo-nos surpreender por Cristo, que vem ao nosso meio e nos chama pelo nome, assim como fez com Maria Madalena, a primeira anunciadora da Ressurreição e a primeira padroeira da Ordem Dominicana! Todos, homens ou mulheres, gays ou heterossexuais, têm a mesma vocação, que é a de aprender a amar mais profundamente e assim entrar no mistério do amor de Deus que é a Trindade.

Reportagem de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS

09/04/2009

Pe. Timothy Verdon

"Se o Cristo de Leonardo levantasse o olhar, veria a cruz"

Timothy Verdon é norte-americano, mas vive há muitos anos em Florença, onde dirige o escritório diocesano para a catequese por meio da arte. É um dos maiores especialistas mundiais em arte cristã. Segundo Sandro Magister, neste artigo, publicado no L’Osservartore Romano, em 30-03-2009, Pe. Timoty "explica em chave artística, teológica e litúrgica o sentido profundo da obra mestra de Leonardo Da Vinci. Um caminho artisticamente sublime para se entender esse ato inicial da paixão de Jesus que é a sua última ceia. E para fazer-nos participar dela, como toda grande obra de arte sabe fazer".
Fonte: UNISINOS



O Cenáculo de Leonardo Da Vinci foi pintado em um refeitório: a ceia de Cristo em um lugar onde se come.

Também tem importância o fato de que o refeitório era o de uma comunidade consagrada, os dominicanos do convento de Santa Maria das Graças, em Milão. A Última Ceia, no curso da qual o protagonista, Cristo, assumiu um grave compromisso, foi pintada pelos cristãos comprometidos em segui-lo.

Além disso, é significativo que esse refeitório se encontre a poucos passos da igreja em que os consagrados escutavam as Escrituras que davam sentido ao seu compromisso e onde se alimentavam com o corpo e o sangue oferecidos originariamente por Cristo, no contexto do acontecimento representado por Leonardo.

E é fundamental recordar que os frades se dirigiam da igreja ao refeitório: iam almoçar – pelo menos nas grandes ocasiões e nos dias de festa – imediatamente depois da solene Missa comunitária. Viam o Cenáculo de Leonardo no contexto de um compromisso que envolvia toda a sua vida, depois de ter escutado o Evangelho e de ter recebido a eucaristia.

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Obviamente, esse modo de observar a obra não era o único, e inclusive nessa época a pintura sugeria outros significados.

A representação do Cenáculo mais célebre de todos os tempos ilustra, por exemplo, de forma singular, a relação com os "mistérios" teatrais contemporâneos.

Pintada entre 1495 e 1497, a obra reassume, além disso, a busca estilística audaz iniciada, elaborada e codificada por outros mestres florentinos: em primeiro lugar, Gioto; depois, Donatello e Masaccio, e por último Leon Battista Alberti. O cenáculo foi rapidamente reconhecido como uma pedra angular da cultura artística do Renascimento.

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As duas coisas não são absolutamente contraditórias. A Última Ceia foi solicitada a Leonardo pelo então duque de Milão, Ludovico Sforza, no contexto de um projeto de modernização e embelezamento do convento e da igreja de Santa Maria das Graças, no qual o príncipe tentou localizar a sua própria sepultura. No marco global do projeto, dirigido pelo arquiteto Donato Bramante, a Ceia de Leonardo tinha uma função dupla: por um lado, devia ser uma obra de arte sacra – a imagem da "coena Domini" na sala onde os freis comiam suas refeições – e, por outro, devia satisfazer a ambição do duque de dar prestígio à sua capital, com obras de arquitetura e de arte no estilo moderno.



Além dos elementos de conteúdo religioso presentes na pintura, Leonardo criou de fato o exemplo mais perfeito e jamais visto na Itália setentrional da nova perspectiva inaugurada pela arte florentina, abrindo a parede do fundo do refeitório para produzir a ilusão de uma sala espaçosa, com o teto no estilo "cassettoni". Essa sala – como o grandioso presbitério coberto por uma cúpula que Bramante realizou contemporaneamente para a igreja – atualizava uma estrutura pré-existente, definindo uma extensão ideal, em um nível mais alto: o espaço de Cristo no convento dos freis.

Na realidade, os dois aspectos do Cenáculo – o técnico e o místico – se sobrepõem, porque é também graças ao uso da perspectiva que Leonardo conseguiu mostrar que a vida da comunidade religiosa é uma extensão da vida de Cristo e dos apóstolos.

Por meio de sua construção em perspectiva, o artista focaliza a atenção em Cristo, fazendo de sua figura o ponto de entrecruzamento de todo o cosmos pictórico definido pela sala. Com efeito, as linhas diagonais que levam o olhar em profundidade conduzem inevitavelmente a Cristo, tudo volta a se ligar com Ele, é Ele o eixo da lógica visual além da narrativa do conjunto. Ele não é o ponto último, o ponto de fuga da perspectiva. As linhas diagonais convergem, na verdade, atrás de Cristo, no ar vespertino que está além da janela. Mas esse ponto último permanece escondido. Procurando o infinito, o nosso olhar se detém em Cristo, como se ele ainda dissesse: "Quem me viu, viu o Pai" (João 14, 9).

A força dessa concentração de perspectiva e cristológica idealizada por Leonardo fica clara se compararmos a sua Ceia com as outras interpretações do tema na pintura da época.

Domenico Ghirlandaio, por exemplo, nos anos 1480-1490, pintou duas representações, quase idênticas, nos conventos de Todos os Santos e de São Marcos, em Florença. Como Leonardo, esse artista se serviu da perspectiva para dar a ilusão de um espaço real, porém, sem construir o espaço em relação direta com Cristo. Na Ceia pintada por Ghirlandaio [ver abaixo], o olho avança da esquerda para a direita, parando em cada uma das 13 figuras separadas mais ou menos igualmente, sem captar imediatamente qual delas representa Jesus. Duas estão em posições diferentes das outras: Judas, sentado à mesa do nosso lado, e o jovem São João, que repousa, com a cabeça entre os braços cruzados na mesa. Por um processo de eliminação, compreende-se que a figura sobre a qual João se apóia – o homem situado em frente a Judas – deve ser Cristo. Mas isso não fica instantaneamente claro.

Ceia de Domenico Ghirlandaio

Essa organização – que era clássica na arte florentina, empregada desde o século XIII nos refeitórios – ajuda a compreender a novidade da leitura de Leonardo Da Vinci.

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Sabemos, por causa de um desenho seu conservado em Veneza, que, em um primeiro momento, Leonardo também tinha pensado em colocar os apóstolos ao longo da mesa, como muitas unidades separadas, com São João adormecido ao lado de Cristo e Judas no outro lado. Porém, em um certo ponto, Leonardo parece ter compreendido que o efeito dessa fragmentação teria sido como em Ghirlandaio: 12 homens isolados uns de outros, que reagem separadamente, cada um à sua maneira, ao anúncio perturbador que, pelo contrário, interessa a todos: o anúncio que os coloca em crise, não tanto como indivíduos, mas como grupo, como comunidade: "Em verdade, em verdade vos digo: um de vós me trairá" (João 13, 21).

Para evitar essa fragmentação narrativa, Leonardo preferiu então unir os 12 em torno de Cristo em quatro grandes grupos, nos quais o elemento que impacta é justamente a eloquência coral de mais pessoas reunidas por um único ímpeto emotivo. Com atenção particular à diversidade de tipologias e gestos, o pintor representa o que podia ter realmente acontecido em uma comunidade de homens que viviam juntos há três anos. Os 12 se subdividem naturalmente em grupos diversificados uns dos outros, mas conectados entre si. No interior de cada grupo, discute-se sobre o significado do que Cristo disse, mas a atenção psicológica, expressada por meio de olhares e gestos, dos dois lados da mesa, volta-se necessariamente para o centro, para Cristo.

Por isso, esse movimento centrípeto, em superfície, tem a mesma função que as linhas de perspectiva em profundidade: conduzem a atenção ao ator principal, no momento mesmo do seu grande discurso, do gesto misterioso e comovente: o dom da sua vida nos sinais do pão e do vinho.

Notemos, assim, como nos grupos colocados imediatamente à direita e à esquerda de Jesus, o movimento é invertido: os apóstolos ao lado de Jesus se jogam para trás, o fluxo dos seus sentimentos não alcança o Salvador, que pronuncia o seu discurso e realiza o seu gesto em majestosa solidão. Os movimentos dos corpos à direita e à esquerda, os gestos das mãos, não o tocam: são como ondas que lambem um promontório sem molhar o seu topo. Porém, intuímos que a intensidade de sentimento nesses homens – a sua capacidade de agir com "um só coração e uma só alma", o seu desejo comum de transparência diante da comoção de um Mestre que se fez servo e que agora lhes fala de traição e de morte – depende de Jesus, nasce em relação a Jesus: é Ele que motiva e funda a abertura com aqueles, por exemplo, Filipe, à direita, que convida com as mãos a ler no seu coração.

No percurso da ceia, Jesus se abriu a eles, deixou ver a sua própria angústia, falou sobre ela, deu-se totalmente de um modo novo, corpo e espírito juntos, e então os apóstolos se acham capazes de se abrir, dispostos também eles a se dar. Em contato com a realidade desse Senhor-Servo, desse homem que fala de Deus, os seus discípulos descobrem uma capacidade de resposta além dos limites normais da natureza, uma capacidade sobrenatural semelhante à abertura do próprio Jesus. "O novo e grande mistério que envolve a nossa existência – escreveu São Gregório Nazianzeno mil anos antes de Leonardo – é essa participação na vida de Cristo. Ele se comunicou inteiramente a nós: tudo o que Ele é se tornou completamente nosso. Sob todos os aspectos, nós somos Ele. Para Ele, levamos em nós a imagem de Deus, do qual e para o qual fomos criados. A fisionomia, a marca que nos caracteriza é já a de Deus" (Discurso 7, Patrologia Grega 35, 786-787).

No Cristo de Leonardo convergem as linhas que levam ao infinito, convergem os sentimentos de muitos corações e convergem – se entrecruzam, se sobrepõem, se identificam – a natureza divina com a humana.

Nessa extraordinária figura, o pintor recolhe todos os fios do relato evangélico: o "desejo ardente" de partilha de Jesus; a plena consciência do que lhe ocorreria; o sentido de ter chegado ao momento supremo, de realizar pela última vez um gesto comum, abrindo o seu significado a um horizonte ilimitado.

A composição piramidal que sugere quietude e força; a eloquência com a qual Cristo abre os braços a estende as mãos: a direita (à nossa esquerda) voltada para a taça de vinho, a esquerda (à nossa direita) que mostra o pão; o isolamento real em meio aos apóstolos, a cabeça ressaltada contra a luz do entardecer, sem auréola, mas enquadrada pela nobre arquitetura da sala; e o ar de sutil tristeza na inclinação da cabeça, como também naquilo que permanece como expressão nessa pintura danificada: tudo é fiel à imagem que o Novo Testamente oferece do Salvador na noite em que foi traído, a imagem de alguém que se doa espontaneamente e, ao mesmo tempo, institui um rito eterno; alguém que fala do seu reino, portanto um rei; e sobretudo um homem consciente de ir ao encontro da morte que aceitava livremente, "sabendo que o Pai lhe dera tudo nas mãos, e que saíra de Deus e para Deus voltava" (João 13, 3); "sabendo", "aceitando", mas sofrendo humanamente, "soltando as rédeas da emotividade", como dirá Gianfrancesco Pico della Mirandola em um tratado sobre a imaginação escrito nos mesmos anos.

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Procuramos recolher o impacto dessa figura no seu contexto de uso original. As constituições da ordem dominicana, reformuladas no capítulo geral ocorrido em Milão em 1505 no convento de Santa Maria das Graças, o mesmo do Cenáculo de Leonardo, descrevem com precisão o ritual de ingresso em um refeitório, indicando também a função de eventuais imagens colocadas em tais espaços comunitários. "Ao soar a campainha – lemos – os irmãos devem se dirigir silenciosamente, mas com decorosa rapidez, ao lugar em que deverão lavar as mãos. Lavadas as mãos, devem ir, depois, na ordem habitual, sentar-se no banco disposto fora do refeitório, e nessa posição recitar o 'De profundis'. Quando, enfim, o prior chamar para o ingresso no refeitório, devem entrar de dois em dois, começando pelos mais jovens. E quando estiverem no meio do refeitório, devem se inclinar frente à cruz ou à imagem pintada ali colocada e, feito o sinal da cruz, devem ir sentar-se à mesa".

Como sugere esse texto, o significado religioso do Cenáculo e de outras imagens no refeitório deve ser meditado no interior de um sistema de ritos e sinais elaborado pela tradição monástica por meio de muitos séculos. A "cruz ou imagem pintada" no refeitório onde se comia e o salmo recitado antes de entrar, enquanto os freis lavam as mãos, remetiam ao sentido eterno de ações ordinárias, cotidianas: a limpeza e a alimentação. O Salmo 130, chamado de "De profundis", atribuía, por exemplo, um significado espiritual ao ato comum de higiene. "Do profundo" da própria culpabilidade, o salmista (e com ele o frei que se lavava) expressava a sua fé de que Deus é capaz de purificá-lo: "Junto ao Senhor está a misericórdia; encontra-se nele copiosa redenção. E ele mesmo há de redimir Israel de todas as suas culpas". Do mesmo modo, a cruz ou imagem pintada na parede do refeitório dava um sentido religioso ao ato de comer, convidando os comensais a ler no alimento um significado espiritual além do físico: não só de sustentação do corpo, mas de sustento da vida interior.

Na prática, os significados dos dois momentos – do "De profundis" fora da porta e da inclinação frente à imagem da paixão dentro do refeitório – estavam ligados. Se o ato de se lavar expressava a fé no perdão divino, o de se sentar à mesa comunicava a coragem de viver. O pecador perdoado come e se mantém vivo porque aceita o perdão do Deus misericordioso; se inclina diante da cruz ou de outra imagem no refeitório porque nela reconhece a expressão dessa misericórdia: Cristo que oferece a própria vida em resgate pelos pecados dos homens. A cruz expressa sempre essa "redenção", e a "imagem pintada" mais usada nos refeitórios, a última ceia, comunica-o igualmente: no relato evangélico, Jesus dá o vinho aos seus discípulos durante a ceia com as palavras: "Bebei todos, porque isto é meu sangue, o sangue da Nova Aliança, derramado por muitos homens em remissão dos pecados" (Mateus 26, 27-28).

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Voltando a olhar a Última Ceia que os redatores das constituições dominicanas tinham diante dos olhos em 1505, a pintura de Leonardo, devemos ainda notar que, no refeitório de Santa Maria das Graças, há duas pinturas, frente às quais era preciso se inclinar.


Crucificação de Donato Montorfano

Nos mesmos anos, de fato, em que Leonardo pintou a Última Ceia, um artista milanês, Donato Montorfano, pintou o afresco da parede em frente a esta com uma monumental Crucificação, ainda visível no outro lado superior da sala. Consequentemente, "lavadas as mãos" com fé na misericórdia divina, os freis que entravam no refeitório se encontravam abraçados de ambas as partes por essa misericórdia: na frente e atrás de si, tinham imagens da "grande redenção" realizada em favor dos pecadores por Cristo. Em uma das duas paredes do fundo viam, na Última Ceia, o empenho de Jesus em oferecer o seu corpo e sangue "para a redenção dos pecados", e na parede oposta viam, na Crucificação, o cumprimento do empenho, quando Cristo oferece a sua vida fisicamente na cruz. Tendo relembrado a sua necessidade de perdão, os freis iam à mesa entre os dois momentos nos quais esse perdão se realizara: entre a quinta-feira de noite e a sexta-feira de tarde da "hora" de Jesus, entre a Ceia e a Cruz.

O fato de que o próprio Leonardo tenha concebido as duas pinturas do refeitório como componentes de um programa unitário é confirmado pela sua decisão de abandonar o seu primeiro projeto de composição, o do desenho veneziano, para a montagem que descrevemos. No lugar do Cristo que se esforça para dar o bocado a Judas, o artista idealizou um Cristo real e sacerdotal, que, abrindo os braços, mostra o pão e está ao ponto de tomar o vinho. Isto é, no lugar de uma figura narrativa – o Cristo do desenho veneziano, que interage com Judas –, Leonardo preferiu um Senhor totalmente inferior, que convida à introspecção psicológica. O olhar velado de tristeza, a cabeça inclinada, o isolamento da figura sugerem um momento de profunda interioridade.

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Leonardo deriva a composição do seu Cristo de três fontes. A primeira é a imagem do rei e juiz proporcionada pelo grande Cristo em mosaico do Batistério da sua cidade, Florença: o eterno sacerdote vestido do céu e da terra, com os braços estendidos para acolher ou rejeitar em virtude do mistério da sua paixão [ver abaixo].


Cristo em mosaico do Batistério da Basílica de Santa Maria del Fiore, em Florença

A segunda é a imagem do legislador típica da arte paleocristã e medieval: o Senhor que abre os braços para transmitir o rótulo ou livro do seu Evangelho aos fiéis. A peça do altar de Andrea Orcagna em Santa Maria Novella [ver abaixo], a igreja da ordem dominicana em Florença, apresenta Cristo deste modo: um rei legislador, que com a mão direita confia a São Tomás de Aquino o livro da teologia, enquanto que com a esquerda dá as chaves do reino celeste a São Pedro. Entre os temas tocados por Jesus na ceia, havia de fato os do "reino" e os da "nova lei" do amor. São Tomás, no seu comentário teológico ao discurso da última ceia, une justamente essas idéias, recordando que na última refeição feita com os seus discípulos, Cristo agiu simultaneamente como rei, como legislador e como sacerdote. Além disso, são Tomás – cuja interpretação devia ser familiar aos dominicanos de Santa Maria das Graças – diz que essas três funções, que normalmente interessam a categorias diferentes de pessoas, "confluem" em Cristo.


Obra de Andrea Orcagna na Basílica de Santa Maria Novella

Mas é a terceira fonte do seu Cristo que permite que Leonardo funde perfeitamente as outras duas. A pose do Salvador com os braços estendidos e a cabeça inclinada em sinal de tristeza ou de morte corresponde à imagem comumente utilizada nessa época para as imagens do "Vir dolorum", do Homem das dores, que permitiam ver o corpo de Jesus deposto da cruz com a cabeça inclinada e os braços estendidos para mostrar as chagas [ver abaixo]. A majestade real, a hieraticidade sacerdotal e a dignidade legal são compreendidas, recapituladas, aprofundadas ao infinito nessa alusão visual ao Servo Sofredor, porque Cristo reina da cruz quando oferece a si mesmo como sacerdote, vítima e altar, para instituir com o próprio sangue a nova aliança para o perdão dos pecados.


"Vir dolorum", de Hans Memling

Na Ceia do refeitório de Santa Maria das Graças, Cristo abre os braços no gesto realizado no dia posterior à cruz. A pose de Cristo leonardiano foi idealizada em função do ato sucessivo do drama sacro, representado na parede oposta do refeitório. A majestosa presença psicológica, a insondável interioridade são atributos de quem contempla e aceita a própria morte.

Se o Cristo de Leonardo levantasse o olhar, veria de fato a cruz do dia seguinte. A cabeça inclinada, a mão aberta que indica o pão, são prenúncios do que deve vir depois. E a vida dos freis – o seu comer, a coragem com que, pecadores perdoados, se mantêm vivos – é compreendida naquele "enquanto": no interstício entre a aceitação e a realização, no espaço cotidiano da sequência, em uma fidelidade muitas vezes sofrida, que lhes configura com Cristo.

06/04/2009

Pe. Hans Küng

O que significa e o que não significa “ressurreição”

Fonte: UNISINOS

É claro que os testemunhos mais antigos e mais curtos do Novo Testamento não apresentam a ressurreição de Jesus como uma devolução da vida mundana – portanto, não estabelecem uma analogia com a devolução da vida pela mão dos profetas no Antigo Testamento. Não, do ponto de vista do horizonte de esperança apocalíptico-judaico trata-se nitidamente do enaltecimento do Nazareno assassinado e sepultado por Deus e para junto de Deus, para junto de um Deus que ele próprio chama “Abba”, Pai.

Afinal, o que significa “Auferweckung”, uma palavra que transmite uma imagem, que significa literalmente despertar do sono? Agora posso responder resumidamente à pergunta:

- Ressurreição não significa o regresso a esta vida espaço-temporal. A morte não é anulada (não se trata da animação de um cadáver). Pelo contrário, a morte é definitivamente superada. Trata-se da entrada numa vida totalmente diferente, imperecível, eterna, “celestial”. A ressurreição não é um “fato público”.

- Ressurreição não significa uma continuação desta vida espaço-temporal. O fato de se falar em “depois” da morte é enganador; a eternidade não é determinada por um antes nem por um depois temporais. Pelo contrário, significa uma nova vida na esfera de Deus, invisível, incompreensível, que rompe com as dimensões de espaço e tempo, simbolicamente designado por “Céu”.

- Ressurreição significa positivamente o seguinte: Jesus não morreu para dentro do Nada. Pelo contrário, morreu para dentro de uma realidade última e primeira, inconcebível, englobante. Foi recebido por essa realidade verdadeira a que chamamos Deus. O que espera o Homem ao encontrar o seu Eshaton, o fim da sua vida? Não o Nada, mas sim Tudo, isto é, Deus. O crente sabe desde então que a morte é a passagem para Deus, é a retirada para junto de Deus, nesse domínio que supera todas as ideias, que nenhum Homem alguma vez viu, alheio ao nosso toque, entendimento, reflexão e fantasia! A palavra mistério é bem empregue para descrever a ressurreição para a vida nova, porquanto se trata do domínio primordial de Deus.

Dito de outro modo, a fé dos discípulos é – tal como a morte de Jesus – um acontecimento histórico (apreensível por meios históricos); por sua vez, a ressurreição através de Deus para a vida eterna não é um acontecimento histórico, visível e imaginável, nem biológico. Todavia, trata-se de um acontecimento real na esfera de Deus. O que significa isto? O que significa “viver”? Um olhar para o quadro da ressurreição de Grünewald adverte-nos para o fato de o ressuscitado não ser meramente um outro ser puramente celestial, continua possuindo o corpo e a alma do homem Jesus de Nazaré, o crucificado. E a ressurreição não transforma este homem num fluido indeterminado, fundido com Deus e com o universo. Este homem permanece também na vida de Deus, o homem determinado, inconfundível que foi, porém, sem as limitações espaço-temporais da sua figura mundana! Daí a transição do seu rosto para pura luz em Grünewald. Segundo os testemunhos das escrituras a morte e a ressurreição não anulam a identidade da pessoa, mas preservam-na numa forma inimaginável, transformada, numa dimensão completamente diferente.

A consequência? Atualmente para nós, com formação científica, tem que se falar claramente. Para que a identidade da pessoa seja preservada, Deus não necessita dos restos físicos da existência mundana de Jesus. Estamos perante a ressurreição para uma forma de existência totalmente diferente. Talvez a possamos comparar com a existência das borboletas, que saem do casulo da lagarta. Tal como esse ser vivo deixa a velha forma de existência (“lagarta”) e aceita uma nova forma de existência inimaginável, liberta e leve (“borboleta”), assim podemos imaginar o processo de transformação de nós mesmos através de Deus. Uma imagem. Não estamos obrigados a qualquer tipo de ideias fisiológicas de ressurreição.

Afinal a ressurreição está ligada a quê? Não ao substrato constantemente a mudar ou aos elementos deste corpo particular, mas sim à identidade dessa pessoa inconfundível. O caráter físico da ressurreição não exige – nem outrora nem hoje – que o corpo morto seja reanimado. Pois, Deus ressuscita o Homem numa nova forma, inimaginável, como consta do paradoxo de Paulo: como “soma pneumatikón”, de “caráter físico-espiritual”. Com estas palavras, de fato, paradoxais, Paulo pretendia transmitir-nos simultaneamente as seguintes duas mensagens: continuidade – porque o “caráter físico” representa a identidade da pessoa até ao momento, que se desfaz, como se a história vivida e sofrida até ao momento se tivesse tornado irrelevante – e, simultaneamente, descontinuidade – porque o “caráter espiritual” não representa simplesmente a continuação ou a reanimação do antigo corpo, mas sim a nova dimensão, a dimensão do infinito, que depois da morte de tudo o que é finito se transforma, tem seu efeito.

Cardeal Carlo Maria Martini

Início e fim, os dois mistérios da vida


Para o cardeal Carlo Maria Martini, o “valor absoluto” da vida física só tem sua importância enquanto tem sua origem em um valor muito maior e verdadeiramente intangível, que toca o próprio mistério de Deus. O artigo foi publicado no jornal italiano Corriere della Sera, 05-11-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS




“La vera vita” [A verdadeira vida] é o título de um livro escrito pelo Pe. Luigi Sturzo, em 1943. Tinha como subtítulo “Sociologia do sobrenatural”. Esse escrito espiritual de um homem que se dedicou sobretudo aos problemas sociais e políticos me ilumina na busca daquilo que seja necessário dizer para responder a uma amável pergunta feita a mim com relação aos complexos temas da vida.

Comecemos lembrando (coisa que nem sempre se faz) que, com a palavra “vida”, entendemos aqui, de fato, a “vida humana”, e não outros fenômenos vitais, por quanto complexos possam ser. Nesse sentido, “vida” é, antes de tudo, oposto a “morte”, morte do homem e da mulher, cujo momento preciso não é fácil de definir – como mostram as controvérsias entre os cientistas –, mas cujas conseqüências se manifestam, com evidência, na rápida degradação de todo o organismo.

Assim, analogamente, não é fácil definir quando começa exatamente uma vida humana, sobretudo quando um ser pode ser chamado “pessoa” ou “indivíduo” e seja sujeito de direitos e de deveres. Permanece, porém, verdadeiro que cada sinal de vida humana, seja no estágio incipiente como no estágio final, merecem respeito, atenção, reverência. É suficiente que um ser humano tenha um mínimo de “vida”, que dê qualquer sinal de atividade permanente vegetativa, para ser considerado ainda “em vida”.

Aqui nascem algumas grandes questões éticas, como as sobre a licitude de intervir sobre um ser humano que vive, por períodos prolongados, apenas e unicamente (ao menos é assim que parece) o momento vegetativo da própria existência. Uma questão análoga é colocada sobre o início da vida: existem casos em que, reconhecendo todo o respeito devido a um ser humano, a sua presença possa se tornar tão perigosa para os outros que seja necessário retirá-la do meio? Existem situações em que um tal viver se torne tão insuportável e aparentemente imodificável que não seja lícito ter um juízo moral sobre quem põe a isso? Certamente, será muito difícil afirmar isso com a linguagem das leis como dos princípios abstratos: estes não conseguem colher a complexidade dos elementos éticos, valorais e afetivos que entram jogo em cada único caso particular, cada um diferente, de qualquer modo, a todos os demais. Parece-me que só quem está, de fato, jurídica, emotiva e afetivamente envolvido em tais situações podem apreender algo de tal complexidade.

Nasce também a grande questão ética se os “seres humanos”, qual seja o momento do seu desenvolvimento ou degradação, são todos iguais em dignidade e merecem, todos, uma proteção idêntica. Parece óbvio que há um grau de dignidade comum a todos. Entretanto, não se pode negar que há diferenças importantes que se consideram o valor da pessoa e a atenção com a qual a sociedade é chamada a valorizá-la e a protegê-la. A esse propósito nos referimos, com prazer, à “intocabilidade” ou “intangibilidade” de um ser humano, à “dignidade intrínseca” que veta todo uso instrumental de uma criatura humana vivente. Isso se refere também à imagem realmente tocante do “rosto”.

O “rosto” não pode ser usado ou desfrutado por nenhum motivo, deve ser apenas reconhecido, respeitado, amado. O rosto do outro nos fala por si mesmo, sem necessidade de outros argumentos, ainda que a coisa não seja tão evidente quando não se vê diretamente o rosto, mas só algumas manifestações biológicas de um serzinho ainda informe ou próximo à total degradação. Nesse caso, devemos nos alegrar com o fato de que muitos homens e mulheres, também de diferentes realidades culturais, convirjam sobre a intocabilidade do ser humano.

Nas últimas décadas, a Igreja Católica, sobretudo pelas palavras do seu Papa, interveio de muitas formas pela defesa de todos os seres humanos, para proclamar a “indisponibilidade” de cada um deles do início ao fim da existência física. Para ser mais eficaz e crível sobre esse ponto, a Igreja também reduziu muitíssimo a sua tradicional aceitação da pena de morte, o que representa um progresso inegável no sentido de “não matar” nunca e por nenhum motivo. Mas o argumento permanece complexo, e sempre existem também as “zonas cinzas” em que se discute com argumentos pró e contra.

De fato, a questão do puro “sobreviver” ou “não morrer por morte violenta” não é, certamente, o objetivo da vida humana: esta tende àquela “vitalidade” que é plena expressão da potência do corpo e da mente. Daqui surge o uso do termo “vida” para designar a carreira história de um homem ou de um grupo (por exemplo, a “vida de Júlio Cesar”) ou também o comportamento moral de um homem (“vida boa”) e o seu ambiente social (“a vida é muito cara aqui”) etc.

Muitas expressões análogas usam o termo “vida” em correlação com os significados fundamentais que lembramos, mas o significado que gostaria, sobretudo, de destacar é o que até agora não mencionei e que se encontra abundantemente documentado no Evangelho e nas cartas de são João e em outras páginas da Escritura. A começar pelo prólogo solene do IV evangelho (“Nele havia a vida, e a vida era a luz dos homens”, João 1,4), a palavra “vida” indica, acima de tudo, aquela qualidade que é própria de Deus e que é antecipada aos homens graças à ressurreição de Jesus. Veja-se, por exemplo, João 3,15: “para que todo homem que nele crer tenha a vida eterna”; “Aquele que crê no Filho tem a vida eterna; quem não crê no Filho não verá a vida”. Essa é a “verdadeira vida” de quem falava também o Pe. Sturzo.

Esse conceito subjaz a todo o Novo Testamento, que nos oferece, assim, a razão última para a “dignidade” ou “esplendor do rosto” que cada homem, também não-crente, é impelido a reconhecer no seu próximo, mesmo se não for capaz de especificar sempre as razões precisas e últimas para a inalienabilidade e a intangibilidade de tal prerrogativa.

Há mais. Sem essa premissa de fundo sobre a natureza do homem e da mulher chamados a participar na própria vida de Deus, não se consegue explicar facilmente como Jesus tenha considerado a vida humana física como de menor valor, a ponto de exclamar: “Digo-vos a vós, meus amigos: não tenhais medo daqueles que matam o corpo e depois disto nada mais podem fazer” (Lucas 12,4) e de exortar a colocar em jogo a própria vida física por valores mais altos: “Se o grão de trigo, caído na terra, não morrer, fica só; se morrer, produz muito fruto. Quem ama a sua vida, perdê-la-á; mas quem odeia a sua vida neste mundo, conservá-la-á para a vida eterna” (João 12, 24-25). Há, portanto, uma “vida” que encontra o seu cumprimento na “verdadeira vida”. A vida física é substrato e premissa da “verdadeira vida” que é a amizade com Deus.

Pode-se, pois, compreender que, se alguém tem diante de seus olhos uma cultura que despreza a vida física em tantas ocasiões, intervindo violentamente sobre a sobrevivência de pessoas indefesas, ele ouça, como a Igreja ouviu ao longo destes anos pela voz dos Papas, que também apenas a defesa da vida física a qualquer custo já constitui um grande valor e um ponto de convergência importante. Seria errado, porém, e nos levaria pelo caminho errado, tirar todas as conclusões só desse “valor absoluto” da vida física. Porque este só existe enquanto tem sua origem em um valor muito maior e verdadeiramente intangível, que toca o próprio mistério de Deus.

Um cristianismo de instituição e de protesto

O jornalista e ensaísta francês Jean-Claude Guillebaud, em artigo para o jornal La Croix, 03-04-2009, defende que Bento XVI está sendo vítima de uma campanha midiática "muitas vezes injusta e às vezes até hostil". "A Igreja, às vezes, nos desconcerta ou nos revolta, mas continuamos sendo os seus filhos", afirma. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Jean-Claude Guillebaud é autor de inúmeros livros. Alguns estão traduzidos para o português, como A Tirania do Prazer e A Refundação do Mundo.
Fonte: UNISINOS

É preciso fazer com que a perturbação, o tormento, o sofrimento que habitam muitos católicos desde o fim de janeiro sejam afastados, retirados do tumulto cotidiano, se esfriem. Só a tomada de distância e a calma podem permitir que os vejamos mais claramente. No fundo, a nossa perturbação é muito mais difícil de ser vivida por ser ambivalente. Estamos, sobretudo, envergonhados – é um eufemismo – pelo que parece ser um endurecimento dogmático do Vaticano. Além das desastrosas confusões de comunicação, vemos despontar um pontificado mais tradicionalista, e os temores expressados aqui e ali sobre um possível esquecimento do Vaticano II não são absurdos.

Ao mesmo tempo, porém, estamos aflitos por ver Bento XVI vítima de uma campanha midiática muitas vezes injusta e às vezes até hostil. Portanto, mesmo criticando certas posições da Cúria romana, também recebemos sobre nós as flechas que são lançadas contra o papa. Oh, aqueles humoristas ferozes que ouvíamos gritar da manhã à noite! E eis-nos aqui, então, nós, leigos católicos, em uma bela situação! Alguns se sentem tentados a deixar a Igreja silenciosamente; outros gostariam, pelo contrário, que o linchamento mortal do soberano pontífice fosse suspenso. A nossa dor, como Jano, tem, portanto, duas faces. Mas tanto por um lado quando pelo outro, nos faz mal. É possível imaginar uma forma de sair dela?

Creio que sim. Um pouco de distância histórica, sobretudo, nos permitirá lembrar uma evidência. Não é a primeira vez que alguns católicos se encontram em problemas com Roma. Em 17 séculos, pode-se até dizer que isso ocorreu muito frequentemente. Os contemporâneos de Pio IX, no século XIX, não ficaram todos seduzidos pelo seu Syllabus, que denunciava rigidamente as ideias modernas. Do mesmo modo, certos contemporâneos de Pio XII sentiam falta de Pio XI e de sua condenação explícita do nazismo ("Nós somos espiritualmente semitas"). Enfim, o papado é – também – uma instituição humana muito imperfeita. Então, para retomar uma expressão famosa de Francisco de Sales, "onde quer que haja um homem, há um produto de um homem". Enquanto tal, a instituição é submetida legitimamente à crítica dos seus filhos.

Antes de ver uma catástrofe nesses divórcios esporádicos, é melhor compreender que eles estruturam toda a história do cristianismo. Ao lado de um cristianismo de potência e de instituição, sempre houve um cristianismo de protesto, que nunca poupou a própria instituição. Ora, os protestantes eram filhos da Igreja, era da Igreja que procediam. Durante séculos, a história do cristianismo se organizou em torno dessa estranha – e magnífica – sinergia entre "protesto evangélico" e "organização eclesial".

A palavra viva, a que mantém o "fogo" evangélico, circulou mais frequentemente nas margens da Igreja, quando não em reação ao conservadorismo ou a esclerose desta última. São os protestantes e os místicos que transmitiram o fogo da Palavra. Às vezes, foram mantidos às margens. O seu profetismo incandescente corria o risco, é verdade, de incendiar a bela organização clerical. Mas esses testemunhos essenciais poderiam ter existido sem a instituição? Certamente não. É na mesa comum que eles se nutriram primeiramente. É no seio da Igreja, e por meio dela, que tiveram acesso à palavra evangélica. A sua revolta – a de Francisco de Assis ou a de Teresa D'Ávila – era a de uma criança que se rebela contra a autoridade de sua mãe.

A extraordinária longevidade do cristianismo encontrou aí a sua origem: uma instituição periodicamente despertada pelos próprios dissidentes. Sem o protesto que vem das margens, a mensagem teria perdido o seu sabor ou teria até se gastado. Mas sem a Igreja, não teria sido transmitida. Dissidência e instituição são como os lados direito e avesso de uma mesma verdade em movimento.

Uma instituição, qualquer que seja, sempre é tentada a obedecer a uma síndrome de rigidez e de "perseverar no seu ser". A sua natural inclinação consiste em opor a própria imobilidade ao movimento, a preferir a atenção à conservação em vez do progresso, e a ordem social mais do que a liberdade. Ao mesmo tempo, a Igreja ainda é a nossa casa comum. Mesmo sendo dura e disciplinar, ela ainda é uma academia onde a nossa fé se forma e se educa. Ela enfrentou mil vezes as tentações sectárias, heréticas ou intolerantes. Ela acumulou, no curso dos séculos, um corpus de reflexão, de argumentação, de experiência que seria uma loucura jogar no esquecimento. De um século ao outro, ela propõe uma propedêutica (do grego, paideuein: ensinar) da fé.

A nossa fé precisa da Igreja. Senão, o crer não seria outra coisa do que uma paixão incerta que saltita e se diverte antes de correr ao abrigo de uma seita, de uma tribo ou de um grupo extremista. "Não se conjuga o verbo crer – escrevia Emmanuel Levinas – na primeira pessoa do singular, mas sim do plural".

A Igreja, às vezes, nos desconcerta ou nos revolta, mas continuamos sendo os seus filhos.

04/04/2009

Liberdade. Uma herança do cristianismo

Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, o filósofo italiano Gianni Vattimo afirma que “sociedade liberal e sociedade laica são resultados de uma pertença religiosa da qual nos libertamos aos poucos, conservando, no entanto, muitos traços dela, que constituem seu sustento”. Estudioso do pensamento de Nietzsche, Heidegger e Gadamer, Vattimo é conhecido como o mentor do "pensamento fraco". De sua produção intelectual, destacamos, Credere di credere (Milano: Garzanti, 1996), O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna (São Paulo: Martins Fontes, 1996) e Depois da cristandade. Por um cristianismo não religioso (São Paulo: Record, 2004).

Por: Graziela Wolfart e Patricia Fachin. Tradução de Benno Dischinger, 30/03/2009.
Fonte: UNISINOS



IHU On-Line - O senhor defende um espírito religioso na história e argumenta que sem isto não existe uma verdadeira república. Por que e em que sentido a religião se torna importante para garantir a existência de uma sociedade laica e liberal?

Gianni Vattimo - Convenço-me sempre mais de que, no espírito religioso, há um componente de “nostalgia”, como quando se festeja o Natal, recordando a nossa infância, as orações aprendidas da voz da mamãe. A religiosidade é sempre, em certo sentido, uma “origem”, um passado que nos marca, como um patrimônio do qual vivemos consumindo-o, transformando-o, secularizando-o. Este passado serve para construir uma sociedade liberal? Direi que sim. Como escreve Nietzsche: “ainda é preciso ter sido religioso...”; sociedade liberal e sociedade laica são resultados de uma pertença religiosa da qual nos libertamos aos poucos, conservando, no entanto, muitos traços dela, que constituem seu sustento. É preciso ter uma religião ou uma família para trair, para poder ser verdadeiramente livre. É como se cada um de nós devesse, para tornar-se liberal, retraçar em si a história da secularização: ontogênese que repete a filogênese, ou como a Fenomenologia do espírito, de Hegel...

IHU On-Line - Quanto ao espírito religioso, quais são os ensinamentos que ele oferece à sociedade ocidental? Como pode contribuir para uma ética na política?

Gianni Vattimo - Não creio que se possa falar do espírito religioso em abstrato. Só posso falar dele em referência à minha – nossa – herança religiosa: cristianismo, judaísmo etc. É verdade que, na religiosidade, como a aprendemos do Cristianismo, há aquilo que Schleiermacher chamava de “o puro sentimento da dependência” – sou criatura, provenho de, não me criei por mim... Será este um traço universal da religião? Não estou seguro de que posso afirmar isso. Por exemplo, o sentido do sagrado, como o descreve Rudolf Otto (numinosum, fascinans, tremendum), já me parece um tanto diferente. Se eu penso no cristianismo e em suas origens judaicas, direi que o que a nossa religião tem a ensinar à política é o espírito de caridade, ou também o que Schopenhauer chamava de altruísmo, a vitória sobre a vontade de sobrevivência a todo custo etc.

IHU On-Line - Sobre questões polêmicas como a pena de morte, o aborto e a eutanásia, por exemplo, Estado, Igreja e diversas religiões entram em conflito devido a ideologias opostas. Neste sentido, como deve prosseguir a relação entre Estado, Igreja e religiões? Como garantir a liberdade em momentos de conflito?

Gianni Vattimo – Precisamente, o liberalismo que herdamos da secularização cristã oferece uma guia neste caso: o valor da pessoa humana (também os cabelos de vossa cabeça estão contados, diz Jesus...) é a liberdade. Não há “verdade” objetiva ou valor supremo que esteja acima disto (Que dará o homem em troca da alma – ou seja, de sua liberdade?). O Estado deve funcionar segundo leis que tenham o consenso exclusivamente em sua base – e, naturalmente, isto é sempre um efeito a ser ainda aperfeiçoado, pois todos nascemos numa ordem social já dada que, no entanto, devemos ter o direito e os modos de modificar, reconstruir, por em discussão. Uma Igreja é a comunidade dos crentes que se reúnem para rezar e exercitar de todas as formas o amor de Deus e do próximo. Como cidadãos, agirão na política segundo aquilo em que creem. Mas, pelo mesmo respeito à liberdade que devem ter aprendido de seu patrimônio cristão, eles respeitarão esta liberdade de todos. O cristianismo nos deixa como herança precisamente o liberalismo e a laicidade; trair estes valores, como frequentemente fazem as igrejas, significa trair a própria religiosidade.

IHU On-Line - O que deveria fazer parte da relação entre Estado e Igreja? Como estas instituições podem ajudar no sentido de construir uma sociedade mais solidária e ética?

Gianni Vattimo - Estado e Igreja não são duas essências estáticas, são instituições históricas que mudam e se transformam. Hoje, em geral, no mundo cristão-ocidental, a relação tende a se configurar frequentemente como um conflito: a Igreja (falo também e, sobretudo, da italiana) exercitou na história da Europa e do Ocidente um poder também temporal que tinha suas razões (a queda do Império romano, a necessidade de certa autoridade estável), as quais hoje são obstáculos à liberdade. Eu sinto como dever cristão ajudar a Igreja a se libertar destes resíduos de poder temporal e a se tornar uma verdadeira defensora da liberdade.

IHU On-Line - Por que, a seu ver, independente de religiões ou crenças, a humanidade carece de ações de caridade?

Gianni Vattimo - Entrará aí o “pecado original”? Eu tendo a identificar o mal com o domínio, a vontade de opressão, o instinto da posse, que parecem depender da vontade de conservar-se e intensificar a própria vida. A ideia de que haja uma vida além da morte, ou, de certo modo, um sentido da história que não se identifica com a minha existência individual no mundo, deve funcionar como um limite à violência. A humanidade, como a conheço, é assim, não sei se dependeria do pecado de Adão (mas, também este, de onde vinha?). O que posso fazer é procurar limitar, em mim e no mundo, a violência que se exerce por toda parte.

IHU On-Line - Se cada ser humano tem uma percepção pessoal sua sobre vida, morte, moral, costumes, que leis devem reger este Estado laico? Na prática, é possível separar domínio público e domínio privado? Como garantir a dignidade humana de escolha?

Gianni Vattimo - Também aqui não creio que haja soluções universais. Há jogos de forças históricas, que deveriam se voltar para o respeito da liberdade de escolha de cada um, a fim de que esta não lese a igual liberdade de todos. Liberalismo, mais uma vez, com a consciência de que não existe jamais, estaticamente, uma ordem da liberdade, pois ela é sempre de novo conquistada. A existência, como ensinava Heidegger, é sempre projeto, jamais conservação de uma ordem ideal.

IHU On-Line - Também se muitos percebem o secularismo (ou a secularidade) como uma oportunidade a fim de que a religião volte a viver no coração dos homens, e não como um trabalho anti-religioso, como o senhor percebe o diálogo entre os cristãos e esta pluralidade de religiões?

Gianni Vattimo - Creio que o encontro com outras religiões, como com outras visões filosóficas do mundo ou outras morais, me constrinja utilmente a tomar consciência da finitude de minha colocação histórica. Posso ser sinceramente crente e sinceramente relativista? Creio que sim, e até creio dever sê-lo. Estou sempre disponível a ser desmentido. Naturalmente, para resistir nesta condição, devo ser aquilo que Nietzsche chamava de “um super-homem”, mas Jesus o chamaria somente de um homem caritativo, que mantém a porta de sua casa aberta a todos.


Gianni Vattimo já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira o material na nossa página eletrônica (www.unisinos.br/ihu)

* “O cristianismo é a religião do pós-moderno” – Revista IHU On-Line número 88, de 15-12-2003.
* “Deus é projeto, e nós o encontramos quando temos a força para projetar...” – Revista IHU On-Line número 128ª edição, de 20-12-2004.
* “O pós-moderno é uma reivindicação de multiplicidade de visão de mundo” – Revista IHU On-Line número 161, de 24-10-2005.
* O nazismo e o “erro” filosófico de Heidegger - Revista IHU On-Line número 187, de 03-07-2006.
* Richard Rorty e seu legado filosófico. Revista IHU On-Line número 225, de 25-06-2007.
* Afirmar o princípio da solidariedade, a ética do futuro – Revista IHU On-Line número 240, de 22-10-2007.

Monge Enzo Bianchi

A espiritualidade dos ateus


Enzo Bianchi, fundador e prior da Comunidade Monástica de Bose, Itália, publicou o seguinte artigo no jornal La Repubblica, 28-02-2007.
Fonte: UNISINOS





"É realmente possível que os não crentes se confrontem com os cristãos sobre as questões em torno do sentido da vida. Na Itália algumas pessoas se exercitam em ofender a fé dos crentes e é negada reciprocamente a capacidade de uma ética universal.

É verdade que hoje o ateísmo militante não é mais constatado como nos anos sessenta, mas o horizonte agnóstico, hoje ainda mais extenso do que então, requer, na realidade, o mesmo esforço da parte dos cristãos para tecer um diálogo que se nutra de pesquisa comum, de escuta e de debate entre vias diversas. De uma parte, no entanto, aquela dos crentes, as posições são freqüentemente defensivas, porque nutridas por medo e postura de vítima, enquanto da parte de alguns não cristãos se chega a ridicularizar a fé, a afirmar que precisamente os cristãos são incapazes de ter uma ética, que a fé é fomentadora de integralismo, intolerância e violência. Veementes ataques anticristãos de uma parte e, da outra parte, falta de escuta e até demonização do “não crente”, julgado “incapaz de moralidade”.

E assim, cá e lá ecoa uma palavra de Dostoievski: “Se Deus não existe, tudo é permitido!”, considerando quem não crê como pessoa priva de espiritualidade e de moral. Mas então, é praticável um diálogo convicto, respeitoso, capaz de ser também fecundo? É possível que os não crentes se confrontem com os cristãos sobre as questões em torno do sentido da vida? É possível que o caminho de “humanização”, essencial à humanidade para não cair na barbárie, seja percorrido conjuntamente? Mas, para que este caminho se abra, são necessárias algumas urgências que procuro delinear.

Agnósticos e ateus não crêem em Deus, mas sentem-se envoltos por esta presença, porque não a sentem real, mas são conscientes que, no entanto, as religiões que professam Deus fazem parte da história humana, da sociedade, do mundo. Como eles não encontram razões para crer, outros, ao invés, as encontram e são felizes: uns pensam que este mundo lhes basta, os outros estão satisfeitos por terem a fé. Mas, precisamente isto leva a dizer que a humanidade é una, que dela fazem parte religiões e irreligiões e que, não obstante, nela é possível, para crentes e não crentes, a via da espiritualidade.

Espiritualidade não entendida em estrito sentido religioso, mas como vida interior profunda, como fidelidade-empenho nas vicissitudes humanas, como busca de um verdadeiro serviço aos outros, atenta à dimensão estética e à criação de beleza nas relações humanas. Espiritualidade, sobretudo, como antídoto ao niilismo que é o despenhadeiro para a barbárie: niilismo que crentes e não crentes deveriam temer, principalmente em sua força de negação de todo projeto, de todo princípio ético, de toda ideologia. Infelizmente este niilismo é muitas vezes definido como relativismo, acabando por confundir a linguagem do diálogo e do confronto e conduzindo, por isso, à incompreensão recíproca. E é o mesmo niilismo que, paradoxalmente, pode assumir a forma de um fanatismo, no qual há certezas absolutas, dogmatismos e intolerância que cegam a ponto de tornar uma pessoa disposta a morrer e fazer morrer. Não ao niilismo, portanto, mas, então emerge a urgência de reconhecer a presença de uma espiritualidade também nos ateus e nos agnósticos, capazes de mostrar que, mesmo que Deus não exista, nem por isso a gente pode se permitir tudo: pessoas que saibam escolher o que fazer baseados em princípios éticos, dos quais o homem enquanto tal é capaz.

E a grande tradição católica solicita aos cristãos reconhecerem que o homem, qualquer ser humano, precisamente porque, segundo a nossa fé, é criado à imagem e semelhança de Deus, é “capax boni”, capaz de discernir entre o bem e o mal em virtude de um indestrutível sigilo posto no seu coração e da razão de que é dotado. E os não crentes são capazes de combater o horror, a violência, a injustiça, de reconhecer “princípios” e “valores”, de formular direitos humanos, de buscar um progresso social e político através de uma autêntica humanização.

Trata-se, para todos, de serem fiéis à terra, fiéis ao homem, vivendo e agindo humanamente, crendo no amor, palavra de que tanto se abusa hoje e com freqüência esvaziada de significado, mas única palavra que resta na gramática humana universal para exprimir o “lugar” ao qual o ser humano se sente chamado.

Crentes e não crentes não podem ser insensíveis a afirmações que percorrem como um adágio os textos bíblicos e que foram retomadas pela tradição: “Somente o amor é mais forte do que a morte... Somente o amor permanecerá eternamente...” De resto, a fé – esta adesão a Deus sentido como presença, principalmente por causa do envolvimento em que o cristão vive com Jesus Cristo – não está na ordem do “saber” e nem sequer naquela da aquisição: crê-se na liberdade, acolhendo um dom que a gente não se pode dar por si mesmo. Analogamente, os ateus, na ordem do saber, não podem dizer “Deus não existe”: esta é, de fato, uma afirmação que eles só podem fazer no âmbito da convicção.

Gostaria que nós cristãos pudéssemos escutar ateus e agnósticos, pudéssemos confrontar-nos com eles, sem inimizades, sobretudo através de um confronto das nossas espiritualidades, daquilo que em profundidade nos move em nosso agir. O espírito humano é demasiado importante para que ele seja deixado nas mãos de fanáticos e de intolerantes, ou então, de espiritualistas da moda. Por certo, toda religião se nutre de espiritualidade, mas também há lugar para uma espiritualidade sem religião, sem Deus.

Porém, na específica situação italiana deveremos prestar atenção também a um outro elemento, fazendo uso de uma anedota histórica. Mussolini confiou um dia ao seu ministro das Relações Exteriores: “Eu sou católico e anticristão!” Herdeiros desta posição ainda podem ser encontrados hoje na Itália: pessoas não crentes nem em Cristo nem no seu Evangelho, mas prontas a defender valores culturais “católicos”.

Não é isto que viso quando falo de espiritualidade dos ateus: penso, ao invés, num sentir que torna possível um confronto precisamente sobre valores do Evangelho, sobre sua mensagem humanizadora a serviço do homem. Creio haver lugar para uma espiritualidade dos agnósticos e dos não crentes, daqueles estão em busca da verdade porque não satisfeitos com respostas pré-fabricadas, com verdades definidas uma vez por todas. É uma espiritualidade que se nutre da experiência da interioridade, da busca do sentido e do sentido dos sentidos, do confronto com a realidade da morte como palavra originária e com a experiência do limite; uma espiritualidade que também conhece a importância da solidão, do silêncio, do pensar, do meditar. É uma espiritualidade que se alimenta da alteridade: vai ao encontro dos outros, ao outro, e permanece aberta ao Outro, se jamais ele se revelasse.

Em A Peste, Camus escrevia: “Poder ser santos sem Deus é o único problema concreto que eu hoje conheço”. Hoje poderemos parafrasear esta afirmação, dizendo que o único autêntico problema é estar empenhados numa busca espiritual, a fim de fazer da vida humana uma obra de arte, um caminho de plena humanização. Sim, na França pensadores como Luc Ferry ou André Comte-Sponville, não cristãos e não crentes propõem, na luta contra a barbárie incipiente, uma espiritualidade também para os ateus. Junto a nós, na Itália, ao invés, alguns parecem exercitar-se em ofender a fé dos crentes e em negar-se reciprocamente a capacidade de uma ética universal, de um humanismo... Eu permaneço teimosamente convencido que, enquanto seres humanos, não somos estranhos uns aos outros e que somos, portanto, chamados a escutar-nos e a procurarmos juntos."

Monge Enzo Bianchi

O Evangelho, o homem, a religião

O monge fundador e prior da Comunidade Monástica de Bose, na Itália, Enzo Bianchi, crê que é a partir do Evangelho que alguém pode se dizer cristão. Em artigo para o jornal La Stampa, 03-04-2009, o autor de numerosos textos sobre a espiritualidade cristã e a grande tradição da Igreja afirma que, "só com a leitura pessoal e direta da Bíblia [...] o cristão pode nutrir a sua fé e robustecer a sua capacidade de testemunhá-la". A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS



Na situação atual, muitos esperam um cristianismo vivido segundo o paradigma da religião forte e encarnado em minorias ativas e eficazes, capazes de assegurar identidades e visibilidades que se impõem, porque pensadas em uma estratégia defensiva e de concorrência. Para mim, considero que apenas vivendo a diferença cristã na companhia dos homens pode-se introduzir uma dinâmica que abale a indiferença à fé cristã e às suas exigências próprias também a muitos falsos católicos.

Acredito que, em vista de uma recuperação do primado da fé, da espera pelas coisas últimas e por uma arte da comunicação autêntica, ainda são indispensáveis a leitura e o conhecimento do Evangelho entre aqueles que compõem a comunidade cristã.

De fato, se é verdade que o cristianismo não é uma religião do Livro, é também verdade que só o Evangelho permite o conhecimento de Jesus Cristo, centro e coração do cristianismo. "A ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo", afirmava São Girolamo, retomado não por acaso pelo Concílio Vaticano II.

Que figura de cristão pode emergir sem um conhecimento direto de Jesus Cristo e da sua humanidade exemplar como a que pode vir da leitura e da familiaridade com os Evangelhos? Como um cristianismo em que o Evangelho não inspira a vida, a esperança e a linguagem dos fiéis conseguirá não se tornar ritual, devocional e se reduzir a um fato cultural ou social, ou até mesmo um fenômeno folclórico ou supersticioso? Só com a leitura pessoal e direta da Bíblia – e, em primeiro lugar, dos Evangelhos – o cristão pode nutrir a sua fé e robustecer a sua capacidade de testemunhá-la.

Nesse sentido, seria portanto desejável um percurso de sério aprofundamento na comunidade cristã que leve em consideração, em síntese, duas exigências. A primeira é a de colocar o acento no Evangelho, sobre o texto que o Concílio quis e soube devolver nas mãos dos católicos na sua inteireza e riqueza depois de séculos de exílio da Escritura da catequese e da pregação: alguns se admiram, outros lamentam frente ao dado que nem um quinto dos italianos afirma ter lido os quatro Evangelhos.

Como é possível, sem conhecer o Evangelho, conhecer Jesus Cristo e senti-lo como Senhor? Como se pode compreender a sua humanidade exemplar para nós, homens, o ser feito homem de Deus "para nos ensinar a viver como homens neste mundo", segundo a expressão de São Paulo? Como perceber que o objetivo da humanização de Deus é a autêntica humanização do homem?

A segunda exigência é a escuta da humanidade de hoje, homens e mulheres: uma escuta que deve ocorrer por meio da emergência da dimensão antropológica. Sim, ao manter juntos o Evangelho e o homem, a fé e a dimensão antropológica, está em jogo o futuro da fé cristã. Se houve e se há um fracasso, é o da transmissão, da "tradição" da fé, mas o antídoto consiste apenas no restabelecer o primado do Evangelho e da escuta do humano.

Em um período em que tudo é colocado em discussão – a concepção da relação com o próprio corpo, com o outro sexo, com o sofrimento, com o tempo, com a natureza... – é preciso elaborar respostas de sabedoria que digam o que é o ser humano e como ele pode se humanizar por meio de uma qualidade de vida pessoal e de convivência.

A religião precisa do exercício da razão para não cair em formas paganizadoras, mágicas ou supersticiosas, mas também precisa que esse exercício racional ocorra não sem os outros, mas com os outros, todos habitantes da mesma pólis. Juntos, cristãos e não cristãos, devemos nos colocar a questão antropológica: o que é o homem? Para onde ele vai? Como pode viver em uma sociedade que luta contra a barbárie e em favor da humanização?

Das respostas que cada um souber dar, obtendo-as do próprio patrimônio espiritual, depende certamente o nosso futuro, mas também, já hoje, a qualidade da nossa vida pessoal e da convivência civil.

Pe. Timothy Radcliffe

Por que ficar na Igreja?

O ex-mestre-geral dos dominicanos, Timothy Radcliffe, em artigo para o jornal La Croix, 31-03-2009, comenta a situação de crise da Igreja hoje e dá o seu testemunho de por que ainda permanece na Igreja católica. Mas afirma: "Não devemos ter medo do debate". A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Fonte: UNISINOS

É um momento embaraçoso para quem é católico. No Vaticano, houve erros de comunicação, falta de consulta, declarações com palavras mal escolhidas que provocaram reações violentas na imprensa e intervenções de um certo vigor por parte de dirigentes internacionais. Tudo isso suscitou aflição e escândalo em muitos católicos, dentre os quais bispos, e provocou danos à reputação da Igreja. Algumas pessoas até se questionaram sobre como puderam continuar pertencendo à Igreja.

Permanecemos porque somos discípulos de Jesus. Crer em Jesus não significa adotar uma espiritualidade privada ou um código moral. É aceitar pertencer à sua comunidade. Aqueles que ele chamou a segui-lo caminham juntos. Segundo um velho ditado latino, "Unus christianus, nullus christianus": um cristão isolado não é um cristão.

Mas porque eu deveria permanecer membro dessa Igreja? Por que não poderia me unir a uma outra comunidade cristã cujas posições oficiais ou cujo modo de agir são menos embaraçosos? Com isso, tocamos a essência de um modo católico de entender a Igreja. Desde a origem, Jesus chamou à sua comunidade os santos e os pecadores, os sábios e os tolos. Ele disse: "Não vim chamar os justos, mas sim os pecadores" (Mateus 9, 13). E continua fazendo-o, senão não haveria lugar para uma pessoa como eu. Uma comunidade admirável de pessoas maravilhosas e virtuosas, que nunca cometessem erros, não seria um sinal do Reino de Deus.

Eu nunca poderia deixar a Igreja católica porque creio que Jesus nos chama a viver juntos como um só Corpo. No Evangelho de João, pouco tempo antes da sua morte, Jesus pregou sobre o seu pai aos seus discípulos "para que todos sejam um" (João 17, 21). Não basta uma vaga unidade espiritual. Nós cremos na Encarnação, na Palavra de Deus que se faz carne. A Igreja católica é o sinal visível, encarnado, da unidade à qual Jesus nos chama. Tenho uma imensa admiração por muitos cristãos que pertencem a outras Igrejas, o seu exemplo me inspira, a sua teologia me instrui. Mas, para mim, deixar a Igreja católica seria renegar o convite radical de Jesus de reunir os santos e os pecadores, os vivos e os mortos.

No centro da nossa vida cristã, está a imensa vulnerabilidade da Última Ceia. Jesus se coloca nas mãos dos seus discípulos: "Tomai, isto é o meu corpo que entrego por vós". Um deles o traiu, outro o renegou, a maior parte fugiu. Pertencer à Igreja é aceitar uma pequeníssima parte dessa vulnerabilidade. Nós aceitamos nos envolver nas derrotas da Igreja como no seu heroísmo, na sua tolice como na sua sabedoria, nos seus pecados como na sua santidade. E a Igreja também me aceita com os meus pecados e a minha estupidez. É por isso que ela é "sinal e sacramento da unidade de todo o gênero humano" (Vaticano II, Lumen Gentium n.1,1).

Porém, estamos efetivamente em um momento de crise da Igreja. Mas as crises podem ser muitas vezes frutíferas. A Última Ceia foi a crise mais profunda que a Igreja já conheceu: Jesus estava ao ponto de sofrer uma morte humilhante, e a comunidade estava dispersa. Em cada Eucaristia, nós recordamos como Jesus fez dela um momento de intimidade mais profunda, o dom do seu corpo e do seu sangue. Depois da Ressurreição, a Igreja estava lacerada. Seriam os Gentios aceitos na Igreja e seriam obrigados a aceitar a Lei? A comunidade estava ao ponto de sucumbir, mas sobreviveu para se abrir também a nós, os Gentios. Depois do martírio de Pedro e de Paulo, muitos acreditavam que Jesus estivesse ao ponto de voltar. Mas não foi assim. Foi uma crise inimaginável da esperança, mas ela levou à redação dos Evangelhos. Toda crise, se é vivida na fé, leva a uma renovação e a uma nova vida.

A crise que nos cabe viver neste momento é verdadeiramente modesta em relação às sofridas por outras pessoas que viveram antes de nós. Por exemplo, a crise modernista, há um século, foi muito mais grave. Porém, a nossa pequena crise pode ser frutífera se a vivemos na fé. Quais poderiam ser esses frutos? Sobretudo, encorajar um debate mais aberto dentro da Igreja. Depois do trauma da Reforma, toda confissão cristã mostrou ter os nervos à flor da pele quando se trata de debater sobre temas que são fonte de dissenso, temendo que isso coloque em perigo a unidade. Mas é só por meio de um debate racional e vivido na caridade que podemos testemunhar a nossa fé. O papa mesmo procurou introduzir debates posteriores na Igreja, por exemplo, o Sínodo dos bispos. Mas nós ficamos nervosos com a ideia de debater com quem tem ideias diferentes. É uma falta de confiança na inteligência que recebemos de Deus. Não devemos ter medo do debate.

A Igreja, de resto, resistiu às tentativas de domínio de governos autoritários: os imperadores romanos, os monarcas absolutos do Iluminismo, os grandes impérios do século XIX, o partido comunista na Europa central... Essas batalhas, necessárias para defender a liberdade da Igreja, levaram a uma estrutura de governo muito centralizada e distante da colegialidade dos bispos. Chegou o momento de fazer com que participem mais do processo decisional. A reação forte de certos bispos à situação atual deixa esperar um reequilíbrio nesse sentido. A carta, humilde e comovente, de Bento XVI aos bispos sobre o problema integralista mostra a sua atenção às suas preocupações e o seu desejo de estar em diálogo com eles. Portanto, não tenhamos medo! Tenhamos esperança!

01/04/2009

Dom Sérgio da Rocha

Sim' à vida!


"Escolhe, pois, a vida" foi o lema da Campanha da Fraternidade, em 2008, retomando uma frase bíblica que se encontra no Livro do Deuteronômio (Dt 30,19). Esta Palavra exprime um grande "sim" à vida: a vida nascente desde a concepção, a vida das mães e gestantes, a vida dos pacientes terminais, a vida dos pobres e sofredores, a vida dos moradores de rua, a vida das vítimas da violência, a vida dos encarcerados, etc. Um "sim" que envolve a defesa e promoção da vida em qualquer situação, condição ou fase de desenvolvimento, em que se encontrar. Um "sim" que abraça a todos, mas especialmente a vida que se encontra mais fragilizada e indefesa. Por isso, trata-se de um "sim" generoso, sem medida ou mesquinhez, um "sim" permanente, que deve ser constantemente atualizado nas situações do cotidiano e diante das ameaças à vida na sociedade.

A Campanha da Fraternidade de 2008 passou, mas não o seu lema, nem a bela e desafiadora tarefa a que se propôs: defender e promover a vida. A Palavra "escolhe, pois, a vida" continua a ser proclamada na luta de tantos em defesa da vida da pessoa humana, "imagem e semelhança" de Deus. Continua a ser critério de discernimento ético e tomada de decisão para muitos diante das difíceis questões envolvendo a vida e a morte. Continua na nova Campanha da Fraternidade de 2009, pois "segurança pública" é um desdobramento e uma exigência da promoção e defesa da vida. O lema "escolhe, pois a vida" continua valendo, pois a Palavra de Deus permanece! Acolher e reconhecer a própria vida e a vida das outras pessoas como dom é tarefa permanente que enche o mundo de ternura, esperança e alegria.

Um valioso documento da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), intitulado "Evangelização e Missão Profética da Igreja", publicado em 2005, destacava três "sim" à vida, em meio aos novos desafios sociais e às conquistas das biotecnologias: a) um "sim" às pesquisas com células-tronco adultas; b) um "sim" à vida em todas as suas etapas e em todas as suas manifestações; c) um "sim" à biodiversidade. Embora a reflexão estivesse situada especialmente no campo das pesquisas científicas, estendia-se a outra situações, tais como a miséria e a violência, o direito a vida dos anencefálicos e dos pacientes terminais, recordando que o fato de se ter menor condição ou qualidade de vida não implica em menor dignidade ou menor direito, enquanto pessoa humana. A dignidade e o direito à vida são iguais para todos e a vida indefesa e violada deve receber especial atenção e empenho dos que a cercam, das comunidades e da sociedade.

É preciso recordar e atualizar o "sim" à vida no contexto em que vivemos, marcado por graves e crescentes violações à vida humana, como o abuso sexual de crianças, estupros, abortos, tráfico de pessoas, trabalho escravo, dentre tantos outros sérios problemas. O triste episódio, ocorrido recentemente em Pernambuco, envolvendo o abuso sexual de uma criança pelo padastro, seguido de gravidez e aborto, causou muita dor e indignação. Contudo, lamentavelmente, boa parte do noticiário e das conversas ficou polarizada na delicada questão da excomunhão, negligenciando a necessária reflexão sobre os fatores que têm provocado estupros, violência sexual contra crianças e adolescentes e abortos. Infelizmente, aos poucos, outros casos semelhantes de abuso de meninas ocorridos na própria casa foram sendo noticiados, mostrando que essa realidade não está confinada à tela da TV, mas se encontra disseminada. Contudo, não basta a indignação. É tempo de renovar o nosso "sim" à vida e pensar como vai o nosso respeito e valorização da vida, a começar da vida das pessoas com as quais convivemos. É tempo de renovar o nosso empenho em favor da vida, refletindo sobre o que está acontecendo ao nosso redor e na sociedade.

Dentre muitas outras questões, é urgente pensar sobre: os valores que têm norteado o nosso viver; a vida em família, cuja importância precisa ser resgatada; a postura ética diante da sexualidade, muitas vezes, banalizada e desumanizada; os direitos sociais, especialmente, o direito a vida e a assistência médica das mães e das gestantes, dos nascituros e das crianças. É tempo de renovar o nosso "sim" à vida, fazendo a experiência da vida nova em Cristo, animada pela fé e vivida no amor. O Deus da Vida nos sustenta em nosso "sim" à Vida.

Fonte: Arquidiocese de Teresina

Karl Rahner, 25 anos depois

Depois da missa deste domingo, um paroquiano da Alemanha me lembrou que no dia 30 de março deste ano era o 25º aniversário da morte de Karl Rahner, um dos teólogos católicos mais importantes do século XX. Eu me lembro que me senti órfão quando fiquei sabendo de sua morte e imaginei onde poderíamos chegar, no futuro, com os seus insights a respeito de condições e situações na Igreja que muitas vezes recebemos dele. O texto é de Joseph A. Komonchak, publicado no blog da revista Commonweal, 29-03-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS

Se tivéssemos que julgar isso pelo número de dissertações dedicadas às ideias do pensador, poderíamos concluir que os dias da influência de Rahner acabaram e que a tocha foi passada para Hans Urs von Balthasar. De fato, a preferência de orientação teológica geralmente é colocada em termos de escolher entre Rahner and Balthasar. Há alguns anos, eu participei de uma conferência na universidade de Notre Dame sobre esses dois grandes teólogos. Um balthasariano acusou Rahner de comprometer a transcendência divina com a sua abordagem antropocêntrica. Eu achei isso estranho por vir de um discípulo do homem que afirma saber uma extraordinária quantidade de coisas que aconteceram entre Deus Pai e Deus Filho no Sábado Santo!

Eu não conheço nenhum teólogo que enfatizou e tensionou mais a transcendência do divino Mistério em nossos fracos esforços de compreendê-lo do que Rahner. Ele encarnou o adágio agostiniano: "Si comprehendis, non est Deus" [Se compreendes, não é Deus]. A incompreensibilidade de Deus, mesmo depois da sua autorrevelação em Jesus Cristo-Mistério que permanece Mistério, não por causa de uma falta de inteligibilidade, mas por um excesso de inteligibilidade, em nenhum lugar maior do que no mistério que iremos celebrar na próxima semana, quando o mistério que é excesso de significado encontra e supera a absoluta falta de sentido que é o pecado.

O gênero escolhido por Rahner foi o ensaio teológico, e ninguém pode fingir que os seus ensaios são fáceis. Mas também é possível entender alguma coisa do homem, por meio de seus breves trabalhos sobre oração e em trabalhos como "The Shape of the Church to Come" [do original Strukturwandel der Kirche als Aufgabe und Chance], que ainda nos oferece uma proveitosa leitura.

Uma história: Johannes Quasten, grande patrologista e professor de universidades católicas, costumava visitar a senhora Rahner, mãe de Hugo e Karl, quando tinha que retornar para a Alemanha para suas visitas no verão. Uma vez, quando ela estava com uma idade bem avançada (ela viveu mais de 100 anos), Pe. Quasten comentou alguma coisa que Karl havia dito sobre alguma controvérsia da Igreja na Alemanha. A senhora Rahner, então, respondeu: "Oh, Pe. Quasten, não preste atenção em Karl. Ele sempre exagera!".

É bom saber que Karl Rahner tinha uma mãe também.