06/04/2009

Cardeal Carlo Maria Martini

Início e fim, os dois mistérios da vida


Para o cardeal Carlo Maria Martini, o “valor absoluto” da vida física só tem sua importância enquanto tem sua origem em um valor muito maior e verdadeiramente intangível, que toca o próprio mistério de Deus. O artigo foi publicado no jornal italiano Corriere della Sera, 05-11-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS




“La vera vita” [A verdadeira vida] é o título de um livro escrito pelo Pe. Luigi Sturzo, em 1943. Tinha como subtítulo “Sociologia do sobrenatural”. Esse escrito espiritual de um homem que se dedicou sobretudo aos problemas sociais e políticos me ilumina na busca daquilo que seja necessário dizer para responder a uma amável pergunta feita a mim com relação aos complexos temas da vida.

Comecemos lembrando (coisa que nem sempre se faz) que, com a palavra “vida”, entendemos aqui, de fato, a “vida humana”, e não outros fenômenos vitais, por quanto complexos possam ser. Nesse sentido, “vida” é, antes de tudo, oposto a “morte”, morte do homem e da mulher, cujo momento preciso não é fácil de definir – como mostram as controvérsias entre os cientistas –, mas cujas conseqüências se manifestam, com evidência, na rápida degradação de todo o organismo.

Assim, analogamente, não é fácil definir quando começa exatamente uma vida humana, sobretudo quando um ser pode ser chamado “pessoa” ou “indivíduo” e seja sujeito de direitos e de deveres. Permanece, porém, verdadeiro que cada sinal de vida humana, seja no estágio incipiente como no estágio final, merecem respeito, atenção, reverência. É suficiente que um ser humano tenha um mínimo de “vida”, que dê qualquer sinal de atividade permanente vegetativa, para ser considerado ainda “em vida”.

Aqui nascem algumas grandes questões éticas, como as sobre a licitude de intervir sobre um ser humano que vive, por períodos prolongados, apenas e unicamente (ao menos é assim que parece) o momento vegetativo da própria existência. Uma questão análoga é colocada sobre o início da vida: existem casos em que, reconhecendo todo o respeito devido a um ser humano, a sua presença possa se tornar tão perigosa para os outros que seja necessário retirá-la do meio? Existem situações em que um tal viver se torne tão insuportável e aparentemente imodificável que não seja lícito ter um juízo moral sobre quem põe a isso? Certamente, será muito difícil afirmar isso com a linguagem das leis como dos princípios abstratos: estes não conseguem colher a complexidade dos elementos éticos, valorais e afetivos que entram jogo em cada único caso particular, cada um diferente, de qualquer modo, a todos os demais. Parece-me que só quem está, de fato, jurídica, emotiva e afetivamente envolvido em tais situações podem apreender algo de tal complexidade.

Nasce também a grande questão ética se os “seres humanos”, qual seja o momento do seu desenvolvimento ou degradação, são todos iguais em dignidade e merecem, todos, uma proteção idêntica. Parece óbvio que há um grau de dignidade comum a todos. Entretanto, não se pode negar que há diferenças importantes que se consideram o valor da pessoa e a atenção com a qual a sociedade é chamada a valorizá-la e a protegê-la. A esse propósito nos referimos, com prazer, à “intocabilidade” ou “intangibilidade” de um ser humano, à “dignidade intrínseca” que veta todo uso instrumental de uma criatura humana vivente. Isso se refere também à imagem realmente tocante do “rosto”.

O “rosto” não pode ser usado ou desfrutado por nenhum motivo, deve ser apenas reconhecido, respeitado, amado. O rosto do outro nos fala por si mesmo, sem necessidade de outros argumentos, ainda que a coisa não seja tão evidente quando não se vê diretamente o rosto, mas só algumas manifestações biológicas de um serzinho ainda informe ou próximo à total degradação. Nesse caso, devemos nos alegrar com o fato de que muitos homens e mulheres, também de diferentes realidades culturais, convirjam sobre a intocabilidade do ser humano.

Nas últimas décadas, a Igreja Católica, sobretudo pelas palavras do seu Papa, interveio de muitas formas pela defesa de todos os seres humanos, para proclamar a “indisponibilidade” de cada um deles do início ao fim da existência física. Para ser mais eficaz e crível sobre esse ponto, a Igreja também reduziu muitíssimo a sua tradicional aceitação da pena de morte, o que representa um progresso inegável no sentido de “não matar” nunca e por nenhum motivo. Mas o argumento permanece complexo, e sempre existem também as “zonas cinzas” em que se discute com argumentos pró e contra.

De fato, a questão do puro “sobreviver” ou “não morrer por morte violenta” não é, certamente, o objetivo da vida humana: esta tende àquela “vitalidade” que é plena expressão da potência do corpo e da mente. Daqui surge o uso do termo “vida” para designar a carreira história de um homem ou de um grupo (por exemplo, a “vida de Júlio Cesar”) ou também o comportamento moral de um homem (“vida boa”) e o seu ambiente social (“a vida é muito cara aqui”) etc.

Muitas expressões análogas usam o termo “vida” em correlação com os significados fundamentais que lembramos, mas o significado que gostaria, sobretudo, de destacar é o que até agora não mencionei e que se encontra abundantemente documentado no Evangelho e nas cartas de são João e em outras páginas da Escritura. A começar pelo prólogo solene do IV evangelho (“Nele havia a vida, e a vida era a luz dos homens”, João 1,4), a palavra “vida” indica, acima de tudo, aquela qualidade que é própria de Deus e que é antecipada aos homens graças à ressurreição de Jesus. Veja-se, por exemplo, João 3,15: “para que todo homem que nele crer tenha a vida eterna”; “Aquele que crê no Filho tem a vida eterna; quem não crê no Filho não verá a vida”. Essa é a “verdadeira vida” de quem falava também o Pe. Sturzo.

Esse conceito subjaz a todo o Novo Testamento, que nos oferece, assim, a razão última para a “dignidade” ou “esplendor do rosto” que cada homem, também não-crente, é impelido a reconhecer no seu próximo, mesmo se não for capaz de especificar sempre as razões precisas e últimas para a inalienabilidade e a intangibilidade de tal prerrogativa.

Há mais. Sem essa premissa de fundo sobre a natureza do homem e da mulher chamados a participar na própria vida de Deus, não se consegue explicar facilmente como Jesus tenha considerado a vida humana física como de menor valor, a ponto de exclamar: “Digo-vos a vós, meus amigos: não tenhais medo daqueles que matam o corpo e depois disto nada mais podem fazer” (Lucas 12,4) e de exortar a colocar em jogo a própria vida física por valores mais altos: “Se o grão de trigo, caído na terra, não morrer, fica só; se morrer, produz muito fruto. Quem ama a sua vida, perdê-la-á; mas quem odeia a sua vida neste mundo, conservá-la-á para a vida eterna” (João 12, 24-25). Há, portanto, uma “vida” que encontra o seu cumprimento na “verdadeira vida”. A vida física é substrato e premissa da “verdadeira vida” que é a amizade com Deus.

Pode-se, pois, compreender que, se alguém tem diante de seus olhos uma cultura que despreza a vida física em tantas ocasiões, intervindo violentamente sobre a sobrevivência de pessoas indefesas, ele ouça, como a Igreja ouviu ao longo destes anos pela voz dos Papas, que também apenas a defesa da vida física a qualquer custo já constitui um grande valor e um ponto de convergência importante. Seria errado, porém, e nos levaria pelo caminho errado, tirar todas as conclusões só desse “valor absoluto” da vida física. Porque este só existe enquanto tem sua origem em um valor muito maior e verdadeiramente intangível, que toca o próprio mistério de Deus.