04/04/2009

Monge Enzo Bianchi

A espiritualidade dos ateus


Enzo Bianchi, fundador e prior da Comunidade Monástica de Bose, Itália, publicou o seguinte artigo no jornal La Repubblica, 28-02-2007.
Fonte: UNISINOS





"É realmente possível que os não crentes se confrontem com os cristãos sobre as questões em torno do sentido da vida. Na Itália algumas pessoas se exercitam em ofender a fé dos crentes e é negada reciprocamente a capacidade de uma ética universal.

É verdade que hoje o ateísmo militante não é mais constatado como nos anos sessenta, mas o horizonte agnóstico, hoje ainda mais extenso do que então, requer, na realidade, o mesmo esforço da parte dos cristãos para tecer um diálogo que se nutra de pesquisa comum, de escuta e de debate entre vias diversas. De uma parte, no entanto, aquela dos crentes, as posições são freqüentemente defensivas, porque nutridas por medo e postura de vítima, enquanto da parte de alguns não cristãos se chega a ridicularizar a fé, a afirmar que precisamente os cristãos são incapazes de ter uma ética, que a fé é fomentadora de integralismo, intolerância e violência. Veementes ataques anticristãos de uma parte e, da outra parte, falta de escuta e até demonização do “não crente”, julgado “incapaz de moralidade”.

E assim, cá e lá ecoa uma palavra de Dostoievski: “Se Deus não existe, tudo é permitido!”, considerando quem não crê como pessoa priva de espiritualidade e de moral. Mas então, é praticável um diálogo convicto, respeitoso, capaz de ser também fecundo? É possível que os não crentes se confrontem com os cristãos sobre as questões em torno do sentido da vida? É possível que o caminho de “humanização”, essencial à humanidade para não cair na barbárie, seja percorrido conjuntamente? Mas, para que este caminho se abra, são necessárias algumas urgências que procuro delinear.

Agnósticos e ateus não crêem em Deus, mas sentem-se envoltos por esta presença, porque não a sentem real, mas são conscientes que, no entanto, as religiões que professam Deus fazem parte da história humana, da sociedade, do mundo. Como eles não encontram razões para crer, outros, ao invés, as encontram e são felizes: uns pensam que este mundo lhes basta, os outros estão satisfeitos por terem a fé. Mas, precisamente isto leva a dizer que a humanidade é una, que dela fazem parte religiões e irreligiões e que, não obstante, nela é possível, para crentes e não crentes, a via da espiritualidade.

Espiritualidade não entendida em estrito sentido religioso, mas como vida interior profunda, como fidelidade-empenho nas vicissitudes humanas, como busca de um verdadeiro serviço aos outros, atenta à dimensão estética e à criação de beleza nas relações humanas. Espiritualidade, sobretudo, como antídoto ao niilismo que é o despenhadeiro para a barbárie: niilismo que crentes e não crentes deveriam temer, principalmente em sua força de negação de todo projeto, de todo princípio ético, de toda ideologia. Infelizmente este niilismo é muitas vezes definido como relativismo, acabando por confundir a linguagem do diálogo e do confronto e conduzindo, por isso, à incompreensão recíproca. E é o mesmo niilismo que, paradoxalmente, pode assumir a forma de um fanatismo, no qual há certezas absolutas, dogmatismos e intolerância que cegam a ponto de tornar uma pessoa disposta a morrer e fazer morrer. Não ao niilismo, portanto, mas, então emerge a urgência de reconhecer a presença de uma espiritualidade também nos ateus e nos agnósticos, capazes de mostrar que, mesmo que Deus não exista, nem por isso a gente pode se permitir tudo: pessoas que saibam escolher o que fazer baseados em princípios éticos, dos quais o homem enquanto tal é capaz.

E a grande tradição católica solicita aos cristãos reconhecerem que o homem, qualquer ser humano, precisamente porque, segundo a nossa fé, é criado à imagem e semelhança de Deus, é “capax boni”, capaz de discernir entre o bem e o mal em virtude de um indestrutível sigilo posto no seu coração e da razão de que é dotado. E os não crentes são capazes de combater o horror, a violência, a injustiça, de reconhecer “princípios” e “valores”, de formular direitos humanos, de buscar um progresso social e político através de uma autêntica humanização.

Trata-se, para todos, de serem fiéis à terra, fiéis ao homem, vivendo e agindo humanamente, crendo no amor, palavra de que tanto se abusa hoje e com freqüência esvaziada de significado, mas única palavra que resta na gramática humana universal para exprimir o “lugar” ao qual o ser humano se sente chamado.

Crentes e não crentes não podem ser insensíveis a afirmações que percorrem como um adágio os textos bíblicos e que foram retomadas pela tradição: “Somente o amor é mais forte do que a morte... Somente o amor permanecerá eternamente...” De resto, a fé – esta adesão a Deus sentido como presença, principalmente por causa do envolvimento em que o cristão vive com Jesus Cristo – não está na ordem do “saber” e nem sequer naquela da aquisição: crê-se na liberdade, acolhendo um dom que a gente não se pode dar por si mesmo. Analogamente, os ateus, na ordem do saber, não podem dizer “Deus não existe”: esta é, de fato, uma afirmação que eles só podem fazer no âmbito da convicção.

Gostaria que nós cristãos pudéssemos escutar ateus e agnósticos, pudéssemos confrontar-nos com eles, sem inimizades, sobretudo através de um confronto das nossas espiritualidades, daquilo que em profundidade nos move em nosso agir. O espírito humano é demasiado importante para que ele seja deixado nas mãos de fanáticos e de intolerantes, ou então, de espiritualistas da moda. Por certo, toda religião se nutre de espiritualidade, mas também há lugar para uma espiritualidade sem religião, sem Deus.

Porém, na específica situação italiana deveremos prestar atenção também a um outro elemento, fazendo uso de uma anedota histórica. Mussolini confiou um dia ao seu ministro das Relações Exteriores: “Eu sou católico e anticristão!” Herdeiros desta posição ainda podem ser encontrados hoje na Itália: pessoas não crentes nem em Cristo nem no seu Evangelho, mas prontas a defender valores culturais “católicos”.

Não é isto que viso quando falo de espiritualidade dos ateus: penso, ao invés, num sentir que torna possível um confronto precisamente sobre valores do Evangelho, sobre sua mensagem humanizadora a serviço do homem. Creio haver lugar para uma espiritualidade dos agnósticos e dos não crentes, daqueles estão em busca da verdade porque não satisfeitos com respostas pré-fabricadas, com verdades definidas uma vez por todas. É uma espiritualidade que se nutre da experiência da interioridade, da busca do sentido e do sentido dos sentidos, do confronto com a realidade da morte como palavra originária e com a experiência do limite; uma espiritualidade que também conhece a importância da solidão, do silêncio, do pensar, do meditar. É uma espiritualidade que se alimenta da alteridade: vai ao encontro dos outros, ao outro, e permanece aberta ao Outro, se jamais ele se revelasse.

Em A Peste, Camus escrevia: “Poder ser santos sem Deus é o único problema concreto que eu hoje conheço”. Hoje poderemos parafrasear esta afirmação, dizendo que o único autêntico problema é estar empenhados numa busca espiritual, a fim de fazer da vida humana uma obra de arte, um caminho de plena humanização. Sim, na França pensadores como Luc Ferry ou André Comte-Sponville, não cristãos e não crentes propõem, na luta contra a barbárie incipiente, uma espiritualidade também para os ateus. Junto a nós, na Itália, ao invés, alguns parecem exercitar-se em ofender a fé dos crentes e em negar-se reciprocamente a capacidade de uma ética universal, de um humanismo... Eu permaneço teimosamente convencido que, enquanto seres humanos, não somos estranhos uns aos outros e que somos, portanto, chamados a escutar-nos e a procurarmos juntos."