16/05/2009

Entrevista - Frei Ildo Perondi

O Capitulo das Esteiras. O carisma franciscano, hoje.

Frei Ildo Perondi concedeu entrevista, por e-mail, à IHU On-Line e fala dos desafios dos franciscanos e do cristianismo no mundo de hoje e como devemos enfrentar a crise institucional que estamos vivendo. Além disso, o frei capuchino analisa o encontro de três mil franciscanos em Assis, na Itália, para viver o Capítulo das Esteiras. “Foi um verdadeiro “kairós”: tempo da graça de Deus”, disse ele. Ildo Perondi é graduado em Filosofia pelo Instituto Popular de Assistência Social e em Teologia pelo Instituto Teológico Paulo VI e pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Mestre em Teologia Bíblica pela Pontificia Universitä Urbaniana, é, atualmente, professor da PUC-PR e do Seminário Maior Divino Mestre. Escreveu Me verás pelas costas. Curso Bíblico sobre o Antigo Testamento (São Leopoldo: Oikos, 2008), O filho do pai pródigo (São Leopoldo: Editora Oikos Ltda., 2007) e Caminhando com Clara e Francisco (Petrópolis: Família Franciscana do Brasil, 2000).
Fonte: UNISINOS

IHU On-Line – Diante dos problemas que o mundo enfrenta, para o senhor, quais são os desafios dos franciscanos, em especial, hoje?

Ildo Perondi – Os franciscanos são chamados hoje a viver e atualizar o carisma franciscano. Os franciscanos precisam se perguntar: o que é que Francisco de Assis faria se viesse hoje ao mundo e se vivesse no século XXI? O que é que ele gostaria que as Ordens Franciscanas e seus membros fizessem e vivessem para cativar e atrair as pessoas que buscam Deus e um mundo mais justo e mais fraterno.

É certo que Francisco de Assis teria mais dificuldades de viver o franciscanismo hoje do que no seu tempo. O mundo está fragmentarizado; em frequente mudança... Fico imaginando como viveria Francisco hoje! Certamente não como a maioria dos franciscanos. Francisco seria mais profeta da vida, da ecologia, da paz... Viveria mais o carisma e menos as instituições, como fez na sua época. Iria clamar pela salvação do planeta e radicalizar sua prática da Fraternidade Universal. Seria um moderno “cantor” das maravilhas e dos sonhos de Deus!

IHU On-Line – Como o senhor vê a situação atual do cristianismo no mundo?

Ildo Perondi – O cristianismo está em crise como toda a sociedade pós-moderna. O cristianismo deveria ser sempre uma fonte de esperança e de alegria, como foi no seu início, sinal de vivência do amor fraterno, testemunho de um jeito novo de viver a vida buscando o Reino de Deus como horizonte último. Mas o cristianismo tem dois mil anos de história. Se, por um lado, ele se tornou conservador, porque conservou o “depósito da fé” recebido e transmitiu a tradição de toda a sua história, por outro, infelizmente há também grupos conservadores que representam o atraso, o retrocesso, que caminham na contramão da história. O Papa Bento XVI tem o desejo de ver o cristianismo respondendo aos desafios do mundo moderno (creio que os erros deste Pontificado sejam mais das assessorias do que do Papa). Mas a Igreja como um todo anda devagar, sobretudo a moral e a ética. Ainda não captamos toda a riqueza do Concílio Vaticano II e já seria necessário um novo Concílio para atualizar a mensagem cristã para os novos tempos que estamos vivendo.

IHU On-Line – O que significa o Capítulo das Esteiras no momento atual?

Ildo Perondi – O Capítulo das Esteiras, realizado em Assis, de 15 a 18 de abril deste ano, foi a celebração e a memória dos 800 anos do carisma Franciscano. Foi um encontro de quase três mil irmãos, vindos de todas as partes do mundo, que pertencem às diversas famílias franciscanas. Foi um verdadeiro “kairós”: tempo da graça de Deus. Esperamos que o mesmo produza frutos, que contagie todos os franciscanos e franciscanas do mundo. E que toque também o coração de todas as pessoas que se sentem atraídas e simpatizantes desta dádiva, pois o carisma franciscano não é propriedade das instituições, mas ele é universal. Há tantas pessoas que vivem melhor o franciscanismo do que os franciscanos, isso é uma graça de Deus. Espero que o Capítulo das Esteiras seja esta fonte de água nascente que faça surgir um grande rio, cheio de vida e que irrigue o mundo com a bondade, a paz e ensine que há um jeito novo de viver e amar, mas também de organizar a sociedade e o mundo.

IHU On-Line – Como a vida e os ensinamentos de são Francisco de Assis podem nos ajudar a superar a crise institucional que impera na sociedade?

Ildo Perondi – Francisco de Assis foi alguém que soube inovar e se antecipar aos acontecimentos da história; ele sabia propor soluções concretas para os problemas do seu tempo. Acredito que um dos pontos mais importantes da sua mensagem é que se quisermos viver um mundo novo, precisamos entender que esta é uma tarefa coletiva e não individual. Uma nova ordem institucional mundial é necessária e esta pressupõe o fim do capitalismo selvagem, do domínio das grandes corporações e potências sobre os países mais pobres e o fim da exclusão de massas enormes de pessoas, e também a partilha dos bens e sobretudo dos alimentos.

Francisco de Assis propôs a fraternidade cósmica: devemos reconhecer que somos todos irmãos, não só entre os humanos, mas de todas as criaturas. Somos todos criaturas do Grande Criador. Por isso, devemos saber cuidar uns dos outros e cuidar da vida. Francisco nos ensina que há um novo modo de relacionamento: se tudo está interligado (por causa da origem comum que todos temos), então a vivência deve fraternal, interrelacional e não destruitiva e competitiva como é hoje. O cuidado exige responsabilidade com o outro e com todas as criaturas e sobretudo com a grande obra da Criação, nossa casa comum.

IHU On-Line – Como o senhor analisa a profecia dos franciscanos hoje?

Ildo Perondi – Eu entendo que o mundo deveria cobrar mais dos franciscanos. A Igreja deveria exigir mais dos franciscanos. Evitar que os franciscanos assumam estruturas diversas do seu carisma. Os franciscanos precisam ser empurrados para as periferias do mundo. Recentemente, quando houve o terremoto na Itália, os franciscanos foram ser solidários com os desabrigados. O Papa elogiou este gesto profético. Se São Francisco pudesse, com certeza pediria que os franciscanos saíssem mais dos conventos e fossem morar com os pobres, com os refugiados, com os excluídos. É uma pena que muitos jovens vocacionados de hoje se encantem tanto por São Francisco, mas depois querem viver uma cultura light.

A sociedade deve exigir que os franciscanos sejam mais profetas diante de uma natureza agredida, diante da vida ameaçada, das guerras, da fome, do comércio internacional de pessoas, etc. Creio que o franciscanismo peca porque está no lugar errado, institucionalizado demais, embora as instituições sejam necessárias para proteger o carisma. O profetismo só acontece no lugar certo, isto é, onde é preciso anunciar e denunciar. Na história, os franciscanos fizeram e continuam fazendo tanto bem. No entanto, continua vivo o convite hoje para sermos instrumentos de paz e de reconciliação para levar a bondade e o amor a todas as pessoas, sobretudo as que mais sofrem e são excluídas; levar perdão, luz alegria onde há brigas, trevas e tristeza.

IHU On-Line – O senhor ainda acha que as religiões estão em guerras e conflitos?

Ildo Perondi – As guerras mais estúpidas são as guerras religiosas, porque não acredito que Deus fique contente com alguma delas. Não sei de nenhuma guerra feita em nome do Diabo, mas muitas guerras foram feitas em nome de Deus (certo, sem o Seu beneplácito) e os resultados foram desastrosos. Religião, quer dizer “ re-ligar”. As religiões devem ser instrumentos de paz, de reatamento de relações rompidas. Infelizmente, no século XXI ainda temos o fanatismo religioso, onde se mata em nome de Deus, acreditando com isso agradar ao Criador. O problema é que as causas das guerras são políticas e econômicas e é mais cômodo dizer que é uma guerra religiosa.

Temos tantas guerras e conflitos religiosos. O fundamentalismo religioso é sempre um perigo; o proselitismo e a conquista de fiéis a qualquer custo; a manipulação da fé via MCS alienando o povo e com fins lucrativos, como fazem algumas seitas mediáticas hoje, explorando as doenças, a dor, a crise e a fragilidade das pessoas; a demonização das religiões afros e indígenas etc. São exemplos de como a fé pode ser usada para escravizar pessoas e enriquecer seus líderes.

O Papa em sua visita à Terra Santa e região propõe o diálogo, o intercâmbio e a tolerância religiosa. Entre nós, é importante cultivarmos uma cultura ecumênica que leve a reconhecer a beleza do que é diferente e trabalhar em torno daquilo que nos une e do tanto que temos em comum, e não brigar em torno daquilo que nos separa e nos divide.

IHU On-Line – Qual o papel que a família franciscana ainda tem que desempenhar no mundo?

Ildo Perondi – Vou procurar resumir, sem fechar questão, em sete pontos: Primeiro: é necessário que as instituições se convertam e se coloquem a serviço do carisma franciscano. Segundo: que escutem o chamado a viver o ideal franciscano que é belo e que agrada tanto ao mundo: o mundo precisa da alma e do perfume franciscano! Terceiro: que os franciscanos vão de encontro aos “leprosos” do nosso tempo como Francisco fez em sua época. Quarto: que a Família Franciscana seja interlocutora junto aos artistas para que o mundo da arte (música, filmes, literatura etc.) expresse a beleza da vida na sua simplicidade e alegria. Quinto: que os franciscanos façam parcerias com outras organizações que trabalham pela paz, ecologia e defesa da vida. Sexto: que influenciem junto aos que governam o mundo para um grande projeto de salvação do planeta e da vida. Sétimo: que a exemplo de Francisco, os franciscanos ajudem a “restaurar” a Igreja de Cristo, levando-a a ser sempre fiel à sua missão transmitida por Jesus Cristo.

IHU On-Line – E como a mulher franciscana faz diferença nesse contexto?

Ildo Perondi – Não podemos compreender Francisco sem Clara. O Franciscanismo tem o seu lado feminino. Na saudação “Pax et Bonum”, tão cara a São Francisco, a “paz” é feminina e o “bem” é masculino. No Cântico das Criaturas, Francisco contrapõe o masculino e o feminino: sol e lua; vento e água; fogo e terra... Clara de Assis precisa ser mais conhecida para dar a totalidade do carisma franciscano. As mulheres hoje exercem um papel diferente na sociedade do que aquele do tempo de Francisco, e por isso também são chamadas a viver e reinventar um mundo novo e possível. A ternura e o vigor, próprios do franciscanismo, estão mais presentes nas mulheres. O cuidado e a defesa da vida são características femininas, embora não exclusivas. A cultura da paz está mais presente nas mulheres. Mas penso também que a participação da mulher como sujeito da nova sociedade ajudará a construir novas relações, diferentes do machismo opressor típico da nossa sociedade.

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