Na quarta-feira, 20, o governo da Irlanda publicou um relatório de 2.600 páginas sobre uma investigação de nove anos das escolas e reformatórios administrados pela Igreja. O relatório foi publicado pela Comissão de Inquérito sobre Abuso Infantil e cobriu um período de 60 anos, de 1936 até o presente. O documento levantou sérias questões sobre as instituições católicas que permitiram e fomentaram ambientes de abusos contínuos realizados por padres e irmãs.
O frei dominicano norte-americano Thomas Doyle, advogado especializado em Direito Canônico que também defende os abusados por padres, oferece uma reflexão sobre o relatório. Ele atuou como consultor da comissão da arquidiocese de Dublin que tratou dos abusos sexuais cometidos por padres. O texto foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 22-05-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS
Até agora, a reação à publicação do Relatório da Comissão de Inquérito sobre Abuso Infantil foi muito consistente. Muitos dos que leram as notícias sobre o resumo executivo de 30 páginas expressaram choque, horror, nojo, raiva e outros sentimentos semelhantes. Presumindo-se que o resumo executivo é exatamente isso, um resumo a partir do qual é possível presumir que o relatório completo é mais do mesmo horror, exceto com mais detalhes.
Esse relatório foi o resultado final de uma longa investigação realizada por uma agência governamental e chefiada pela juíza Sean Ryan. A credibilidade do relatório, com efeito, o seu verdadeiro poder, jaz sobre essa fonte. A extensa investigação não foi um esforço privado e certamente não foi promovida pela Igreja Católica Romana. Se esse relatório não for suficientemente explosivo para as mentes e as almas, ele será seguido por um relatório, dentro de alguns meses, sobre o inquérito de abusos sexuais por padres da arquidiocese de Dublin.
A Igreja Católica Romana tem se enredado em cada faceta da vida da república da Irlanda. A Igreja controla a educação, o sistema de saúde e os sistemas de bem-estar social. Cada uma das instituições examinadas pela Comissão era dirigida por uma ordem religiosa católica, sendo as duas predominantes os Christian Brothers e as Irmãs da Misericórdia. Ambas as ordens tem sede em Roma e na Irlanda, e as atividades de cada uma estão sujeitas à supervisão e à autoridade dos bispos irlandeses. As jovens crianças que foram descritas no relatório como vítimas de todos os tipos de abusos espantosos são membros do que o Concílio Vaticano II se refere como "Povo de Deus".
A viciosa devastação sexual, física, emocional e espiritual infligida sobre essas crianças não foi acidental. Foi sistêmica. Fazia parte da vida cotidiana e era, de fato, profundamente arraigada na própria cultura do sistema de cuidado das crianças na Irlanda católica.
Os intelectos e as emoções das pessoas decentes, dos cristãos comprometidos e especialmente dos católicos devotos não podem processar verdadeiramente a inacreditável realidade apresentada nesse relatório. O mundo sádico dessas instituições não é o de uma ditadura secular insana. Não é o mundo de uma cultura tribal incivilizada que assolava os mais fracos em eras muito antigas. Esse relatório descreve um mundo criado e sustentado pela Igreja Católica Romana. Os horrores infligidos sobre essas crianças indefesas e encurraladas – estupros, espancamentos, moléstias sexuais, fome, isolamento – foram impostas por homens e mulheres que fizeram votos ao serviço das pessoas em nome do amor de Cristo.
O relatório da Comissão de Inquérito sobre Abuso Infantil não é único, mesmo que seja o exemplo mais chocante da realidade de uma cultura do mal. Nas últimas duas décadas, mais de duas dezenas de relatórios descreveram abusos físicos e sexuais de crianças e de adultos vulneráveis por padres e religiosas católicos. Entre os mais chocantes está uma série de relatórios submetidos ao Vaticano entre 1994 e 1998, que revela a exploração sexual de religiosas na África por padres africanos. Esses relatórios permaneceram amplamente desconhecidos até que foram trazidos à luz pelo National Catholic Reporter em 2001. Outros relatórios abriram as portas do mundo secreto do abuso sexual por padres nos EUA e em outros lugares. O relatório da Comissão Winter sobre o abuso sexual desenfreado em Mount Cashel, o orfanato dos Christian Brothers em Newfoundland, e o relatório da investigação do Grande Júri da Philadelphia são exemplos não apenas da depravação, mas também do acobertamento institucionalizado.
Todas as revelações das várias formas de abuso por religiosos e padres católicos têm elementos comuns. Da mesma forma, evocam respostas da liderança institucional que são comuns a todos os exemplos de abusos e consistentes em sua natureza. Mais perturbador é saber que os abusos, na Irlanda e em outros lugares, não são acidentais nem isolados e que nunca são desconhecidos pelas autoridades da Igreja. As autoridades da Igreja, desde o próprio Papa até os bispos locais e superiores religiosos, sabiam dessa cultura inacreditável de abusos e não fizeram nada.
O arcebispo Timothy Dolan se referiu à Igreja como uma "mãe amorosa", quando se pronunciou na sua missa de posse em Nova Iorque. À luz desses fatos revelados pelo relatório irlandês, assim como das informações reveladas sobre numerosos outros casos de abusos, uma descrição da Igreja como essa não é apenas absurda, mas também insulta as incontáveis pessoas cuja fé e confiança na hierarquia e no clero foram traídas.
A reação oficial é previsível. Negação, minimização, redirecionamento da culpa e finalmente o conhecimento limitado seguidos pelas "desculpas" cuidadosamente sutilizadas têm sido o padrão. Em nenhum momento a liderança de alguma parte da Igreja institucional confessou qualquer responsabilidade sistêmica. As respostas padrões são totalmente inaceitáveis porque são desonestas e irrelevantes. Aqueles que ainda sustentam a Igreja institucional como sua fonte de segurança emocional podem urrar contra o anticatolicismo, o sensacionalismo da mídia e o exagero do que eles consideram uma aberração. Essas respostas não têm sentido, mas são muito piores, porque infligem mais dor às milhares de pessoas cujas vidas foram violentadas.
A Igreja não pode e não irá se consertar por si mesma. A própria realidade dos abusos contínuos nas instituições irlandesas (assim como em outros lugares) revela uma profunda displicência pelas pessoas por parte daqueles que são encarregados de guiar a Igreja. Há um abandono dos valores fundamentais que supostamente devem vivificar a Igreja, se, de fato, esses valores foram alguma vez internalizados por muitos dos que estão nas posições de poder. Há algo radicalmente errado com a Igreja católica institucional. Isso é dolorosamente óbvio, porque ela permite que os abusos sistêmicos e a desonestidade radical coexistam com a sua identidade autoproclamada de Reino de Deus na terra.
A Igreja institucional está mudando defensivamente a sua atitude com relação aos abusos sistêmicos de uma forma extremamente lenta e só porque ela é forçada a fazer isso pelas forças externas que não pode controlar. A comissão governamental irlandesa é uma coisa, a o sistema legal norte-americano é outro. Nenhuma quantidade de programas burocráticos, de desculpas piedosas, de contorcionismos retóricos e de promessas efusivas de mudanças no futuro vai fazer a diferença. O problema é mais do que o próprio abuso difundido. Punir os criminosos é não ver a floresta que está por trás das árvores. A cultura clerical vinculada à instituição precisa ser examinada sem medo e desmantelada da forma como a conhecemos. Ela já causou muita destruição e matou muitas almas para que seja tolerada por mais uma geração.
Os católicos têm uma profunda obrigação na caridade e na justiça para com as inumeráveis vítimas de todas as formas de abuso. Eles têm uma obrigação para com os crentes de todos os tipos em todos os lugares. Eles precisam fazer incessantemente tudo o que pode ser feito para libertar a comunidade cristã/católica do controle tóxico da estrutura institucional clericalizada, para que a Igreja, mais uma vez, seja identificada não com o anacronismo e a monarquia egocêntrica, mas com o Corpo de Cristo.
Para ler mais:
- Pedofilia: o lado obscuro da Igreja
- Seis décadas de abusos endêmicos. Milhares de crianças, na Irlana, foram vítimas de padres e freiras
- ´Preservar a identidade de quem cometeu as atrocidades é ridículo e ultrajante`
- Cardeal norte-americano é investigado sobre o caso dos padres pedófilos
- Padres pedófilos. O anátema do Papa. ‘Uma vergonha’
- Padres pedófilos são 4% nos EUA e Irlanda
Irlanda. Um trauma terrível
O escritor irlandês Joseph Victor O'Connor, ex-jornalista do The Sunday Tribune e da revista Esquire, em artigo para o jornal La Repubblica, 22-05-2009, comenta os casos de padres pedófilos na Irlanda. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS
A Irlanda, nestes dias, está vivendo um trauma inverossímil e terrível. Depois de ter percorrido a última década em uma camada de autocomplacência em razão de nossos sucessos econômicos, encontramo-nos diante de uma realidade completamente diferente, da qual se depreende que aquele boom foi ilusório.
Políticos corruptos, banqueiros ávidos e especuladores imobiliários quase arruinaram o nosso país, e, como se não fosse suficiente, a notícia oficial destes dias a respeito dos maus tratos e da violência de padres sobre crianças confiadas a eles confirma o que sabemos há muito tempo no fundo dos nossos corações. Em outros países, os pedófilos se escondem: na Irlanda, se escondem em plena vista.
Na maioria dos casos, não se acreditou nas crianças vítimas de abusos e de violências. Ninguém lhes deu confiança, nem as suas famílias. Como as revelações das violências e abusos sistemáticos de crianças irlandesas chegam nesta fase da nossa história, é inevitável que gerem raiva e cólera profundas. Em parte, essa reação se deve aos relatos, tão terríveis, tão cheios de episódios cruéis que fazem com que lágrimas saiam dos olhos de quem os lê. Em parte, porém, deve-se também ao fato de que já é quase evidente que, durante décadas, a organização mais poderosa e rica da Irlanda, a Igreja católica, nas suas múltiplas denominações, fez tudo o que foi possível para silenciar as suas vítimas. As desculpas – se alguma vez existiram – foram equivocadas e ambíguas.
Levantaram-se multidões de advogados, encarregados de contestar as acusações. Quando, pela pressão das associações de violentados e de uma opinião pública sempre mais feroz, conseguiu-se obter um programa de ressarcimento de natureza financeira da Igreja, as suas condições se revelaram de tal modo generosas com relação aos culpados que muitos julgaram o comportamento do governo, em poucas palavras, como inadequado.
Do meu ponto de vista, no entanto, existe um contexto mais amplo capaz de explicar a ira do povo irlandês. Sabemos que a responsabilidade é de muitos: a culpa não é só da Igreja católica, nem só de uma sequência de governos irlandeses injustificáveis, mas da própria sociedade, de cada um de seus elementos. É justamente isso que faz com que a Irlanda se sinta tão profundamente incomodada. Quase todos estavam conscientes dos padres pedófilos e violentos. Não estou exagerando: uma das organizações de sobreviventes desses abomináveis crimes se chama One in Four [um em quatro], porque foi provado estatisticamente que cerca de um quarto das crianças irlandesas sofreu maus tratos físicos ou violência sexual, em sua própria casa, na escola, em qualquer lugar em que, pelo contrário, deveria ter se sentido protegida. Há quem tenha virado os olhos, há quem tenha tapado os ouvidos. As crianças foram tratadas com uma irrelevância sobre-humana na Irlanda, uma sociedade que, para defender um padre, estaria disposta a se virar de cabeça para baixo em uma contorção moral, mas que, por uma criança vítima de estupro, não moveria nem um dedo.
Meu pai, crescido em uma quadra da classe operária na parte antiga de Dublin, recebeu a única instrução dos Christian Brothers: apesar de não ter sofrido maus tratos, nem ter sido molestado sexualmente, e, mesmo que fale com respeito dos responsáveis que se ocupam das crianças mais pobres, viveu sempre com medo na escola. Certamente, refiro-me aos anos 40, quando os métodos de ensino talvez eram totalmente autoritários e brutais. Mas um amigo meu da mesma idade que eu, que freqüentou a mesma escola que eu nos anos 80, falava-me do seu terror nos bancos escolares, dia após dia. O pânico o assaltava logo que ultrapassava os portões da escola e se desfazia apenas quando voltava para casa. Ainda hoje, ele nunca voltou para visitar a sua escola, até se mantém distante da rua onde ela se encontra, exatamente como um vizinho meu que contou à minha esposa que não pode ver, nem mesmo de longe, o edifício em que estudou, o mesmo instituto gerido pelos Christian Brothers. Neste ponto, é inevitável perguntar-se: onde estavam os inspetores do governo? Onde estavam os funcionários? E os burocratas? Como se pôde permitir que tudo isso acontecesse?
Devo destacar que a contribuição dada pela jornalista irlandesa Mary Raftery no canal de televisão nacional RTE foi determinante para pôr fim à espiral do silencio. A liderança audaz e corajosa da qual o jornalista Colm O'Gorman deu prova – ele mesmo vítima de violência sexual e maus tratos pelos padres – foi fundamental para obrigar as autoridades a olhar nos olhos da verdade.
Pessoas como eles se recusaram a ser silenciadas, mesmo tendo encontrado na sua busca de justiça um número verdadeiramente irrisório de aliados. Agora penso que sei o porquê. O comportamento de alguns padres e de algumas freiras foi seguramente delinquente, na acepção plena do termo. Mas nada foi feito para freá-los. A Irlanda, já aflita pelo sentimento de culpa pelos insucessos financeiros, agora também está aflita por esses casos de maus tratos e violências sobre menores.
Entramos em um vértice de recriminações, uma espiral na qual os inocentes são punidos com os culpados. É compreensível. Alguns expoentes do clero seguramente merecem ser objeto de estigmas, mas o meu aviso é que essa é uma outra forma de equívoco moral. Para evitar as acusações é preciso estar chocado, ou pelo menos fingir estar. Só assim consegue-se interpor uma distância entre si mesmo e os fatos obscenos semelhantes. Há ainda um dado, nu e cru, que não é possível não se levar em consideração: não podemos esquecer o pouco que o Estado fez para proteger os pobres irlandeses e em que medida as crianças irlandesas pobres, mais vulneráveis e frágeis, confiadas a instituições de crueldade dickensiana, foram literalmente abandonadas à santidade dos subúrbios morais.
Trata-se de uma velha história, uma história terrível. Quando apontarem um dedo para acusar, estejam conscientes de que três dedos da sua mão apontam contra vocês.
[grifos do blog]