O cardeal Carlo Maria Martini e dom Luigi Maria Verzé se encontraram por diversas vezes entre fevereiro e abril de 2009. Suas conversações, às quais assistiu Armando Torno como moderador, foram registradas, transcritas e enfim relidas por ambos. São dedicadas aos problemas mais relevantes do mundo contemporâneo e se referem tanto ao âmbito religioso quanto ao laico.
Com freqüência enfrentam argumentos delicados, outras vezes se detêm numa Igreja amada e servida, à qual oferecem continuamente sua completa dedicação. Jamais esquecem de sublinhar o amor de Cristo como a solução mais alta. O cardeal e o sacerdote falaram com muita liberdade, como pode ocorrer entre duas pessoas entendidas e competentes com décadas de vida na fé sobre seus ombros. O resultado é algo único: um diálogo sem fingimentos; ou melhor, uma série de conversações nas quais encontraram espaço críticas, aberturas, recordações, possibilidades, tentativas e muitíssimas esperanças e das quais todos podem participar: é uma proposta aberta que se transforma, entre uma pergunta e a subseqüente resposta, numa reflexão livre e profunda.
Nelas se encerra, embora entre argumentos aparentemente distantes, um convite contínuo à fé. O livro nascido destes diálogos que constituem o coração das visitas de dom Verzé ao cardeal Martini se intitula Estamos todos no mesmo barco [Siamo tutti nella stessa barca] (Editora San Raffaele, 96 pp). Por concessão dos autores antecipamos a parte inicial, onde o cardeal Martini descreve a sensação que experimenta no início das conversações, em seguida há uma pergunta e a subseqüente resposta, ambas tiradas da parte central do livro.
O texto foi publicado no jornal Corriere della Sera, 19-05-2009. A tradução é de Benno Dischinger.
Carlo Maria Martini – Não sei se estou acordado ou sonhando. Sei que me encontro completamente no escuro, enquanto um lento marulhar me faz pensar que estou numa barca que vai deslizando para dentro da água. Procuro às apalpadelas estabelecer melhor o lugar no qual me encontro e me dou conta que perto de mim está uma árvore, talvez fosse a árvore mestra da embarcação. Pouco a pouco me aproximo de modo a poder agarrar-me a ela com as mãos, para ter um pouco de segurança e de estabilidade nos sempre mais freqüentes movimentos da barca sobre as ondas.
Nesta tentativa encontro algo que me parece como uma mão de homem. Talvez seja outro passageiro que está procurando também ele apoiar-se na árvore mestra. Não sei quem seria, como eu mesmo não sei como cheguei a encontrar-me sobre esta barca. Mas o toque daquela mão me dá confiança: inclino-me para frente de modo a poder apertá-la e exprimir minha solidariedade com alguém naquela escuridão que dá calafrios.
Também gostaria de dizer algo, embora não saiba se meu companheiro de barca entende o italiano. Mas, nesse meio tempo ele começa a fazer-me uma breve pergunta, à qual respondo com satisfação. Trata-se de uma pessoa que eu não conhecia, mas da qual ouvira falar. Tocava-me seu interesse por mim naquele momento difícil, no qual qualquer um teria vontade de pensar somente em si mesmo. Dialogando, assim, na noite profunda, naquele momento de incerteza e também de perigo, viu-se pouco a pouco despontarem as primeiras luzes do amanhecer. Reconheci o lugar onde me encontrava: estávamos nós dois sozinhos na barca. E, usando alguns remos que encontramos no fundo dela, pusemo-nos a remar em direção à margem, parando de vez em quando para saborear a tranqüilidade do lago.
Dissemo-nos muitas coisas naquela hora. Veio claramente à luz durante a conversação que éramos bastante diversos um do outro. Mas, nos respeitávamos como pessoas e nos amávamos como filhos de Deus. O fato de nos encontrarmos na mesma barca também nos permitia compreender-nos e acolher-nos assim como éramos. Entre as primeiras coisas que nos dissemos há, naturalmente, um pouco de auto-apresentação. Assim, aprendi que meu interlocutor tinha nada menos que oitenta e nove anos, enquanto eu tinha oitenta e dois. Dom Luigi Verzé (tal aprendi depois ser o nome de quem viajava comigo) apresentava sua vida como a de alguém que vivera sessenta e um anos de sacerdócio.
(...)
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Luigi Maria Verzé – Quanto mudou agora a avaliação ética eclesiástica com respeito àquela que era imposta nos tempos de minha infância. De outra parte, já que a moralidade é um imperativo categórico, o povo faz para si uma ética laica própria e a Igreja permanece com uma ética cristã incongruente porque não compartilhada pelos próprios devotos. Recordo, por exemplo, que em minha visita às favelas do Brasil frequentemente me encontrava com pobres mulheres sem marido com uma criança no seio, outra no braço e uma fila de outros que a seguiam, todos gerados por diversos maridos. Era forçoso concluir que a pílula anticoncepcional andava aconselhada e fornecida. O Brasil, totalmente católico até os anos oitenta, agora está disseminado por igrejas e pequenas igrejas semicristãs, organizadas, no entanto, segundo as necessidades até banais do povo. A Igreja católica está longe da realidade, e as multidões, quando chega o Papa, têm mais ou menos o valor dos carnavais e das festas para a deusa Iemanjá, a antiga Vênus à qual todos, incluindo o prefeito cristão, jogam tributos de flores. A Igreja, mais que viver, sobrevive sobre os ossos dos heróicos primeiros missionários.
E, já que estamos no tema de uma moral prática, o senhor diz da negação dos sacramentos aos devotíssimos divorciados? Eu penso que também aos sacerdotes deveria ser em breve retirada a obrigação do celibato, pois temo que para muitos o celibato seja um fingimento, uma ficção.
E não seria mais vantajoso que a consagração dos bispos ocorresse sob aclamação do povo de Deus, hoje tão estranha aos fatos da Igreja? Talvez ainda não se esteja maduro para tudo isto, mas o senhor não crê que sejam temas nos quais se deveria pensar invocando o Espírito?
Carlo Maria Martini – Hoje há não poucas prescrições e normas que nem sempre são entendidas pelo simples fiel. Por isso, a Igreja parece um pouco distante da realidade. Realmente estou de acordo que as multidões que vão a manifestações religiosas nem sempre as vivem com profundidade. É preciso prepará-las e depois é necessário dar um seguimento de reflexão no âmbito da paróquia ou do grupo. Não creio, no entanto, que se possa dizer que em países como o Brasil a Igreja não vive, mas sobrevive somente sobre os ossos dos primeiros heróicos missionários. A Igreja vive lá também no meio de gente simples, humilde, que faz o próprio dever, que ama, que sabe compreender e perdoar. É esta a riqueza das nossas comunidades. Tantos leigos destas nações e também tantos leigos próximos a nós são sérios e empenhados.
Você me pergunta o que penso da negação dos sacramentos a devotíssimos divorciados. Eu me alegrei pela bondade com que o Santo Padre retirou a excomunhão a quatro bispos lefebvrianos. Penso, no entanto, com tantos outros, que há muitíssimas pessoas na Igreja que sofrem porque se sentem marginalizadas e que se precisaria pensar também neles. E me refiro, em particular, ao divorciados recasados. Não a todos, porque não devemos favorecer a negligência e a superficialidade, mas promover a fidelidade e a perseverança. Mas, há alguns que estão hoje em estado irreversível e não culposo. Quem sabe tenham assumido novos deveres para com os filhos havidos no segundo matrimônio, enquanto não há nenhum motivo para voltarem atrás; antes, não seria sábio este comportamento. Acho que a Igreja deva encontrar soluções para estas pessoas. Eu disse com freqüência e repito aos padres que eles são formados para construir o homem novo segundo o Evangelho. Mas, na realidade devem depois ocupar-se também em ajeitar ossos rompidos e salvar os náufragos. Estou contente que a Igreja mostre em alguns casos benevolência e mansidão, mas entendo que ela deveria existir com todas as pessoas que realmente o mereçam. São, todavia, problemas que um simples sacerdote não pode resolver e nem sequer um bispo. É necessário que toda a Igreja se ponha a refletir sobre estes casos e, guiada pelo Papa, encontre um caminho de saída.
Além disso, você menciona um problema muito importante, dizendo que aos sacerdotes fosse retirada a obrigação do celibato. É uma questão delicadíssima. Eu creio que o celibato seja um grande valor, que sempre permanecerá na Igreja: é um grande sinal evangélico. Nem por isso é necessário impô-lo a todos, e nas igrejas orientais católicas ele já não é exigido de todos os sacerdotes. Vejo que alguns bispos propõem conceder o ministério presbiteral a homens casados que já tenham certa experiência e maturidade (varões comprovadamente sérios). Não seria, no entanto, oportuno que fossem responsáveis por uma paróquia, para evitar um ulterior acréscimo do clericalismo. Parece-me muito mais oportuno fazer destes padres ligados à paróquia uma espécie de grupo que atua em rodízio.
Trata-se, em todo caso, de um problema grave. E creio que, quando a Igreja o enfrentar, terá diante de si anos realmente difíceis. Não faltarão aqueles que dirão ter aceito o celibato unicamente para chegar ao sacerdócio. De outra pare, estou certo que sempre haverá muitos que escolherão a via celibatária. Porque os jovens são idealistas e generosos. Além disso, há no mundo algumas situações particularmente difíceis, em particular em alguns continentes. Penso, no entanto, que caiba aos bispos daqueles países enfrentarem estas situações e encontrarem as soluções.
Você também pergunta se não seria mais vantajoso que a consagração dos bispos ocorresse sob aclamação do povo de Deus. A eleição dos bispos sempre tem sido um problema difícil na Igreja. Nas situações antigas nas quais o povo participava mais, verificavam-se litígios e muitas divisões. Hoje talvez tenha sido levada demasiadamente in altro loco [a outro lugar]. Recordo-me que um cardeal canonista interveio numa reunião para dizer que não era justo que a Santa Sé fizesse dois processos para a mesma pessoa: um deveria ser feito in loco e o segundo pelo Núncio.
Quanto à participação do povo, há algumas dioceses na Suíça e na Alemanha que o fazem, mas é difícil dizer que as coisas sem mais andem melhor. Em conclusão, trata-se de uma realidade muito complexa. Mas, o modo atual de eleger os bispos deve ser melhorado.
São temas sobre os quais se deveria refletir muito e falar ainda mais. Nos sínodos alguma coisa emergia, mas depois não era mais aprofundado. O problema, no entanto, existe e se deve poder fazer uma discussão pública a este propósito.
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