27/02/2009

Hans Küng - um trabalhador do Vaticano II

Diz-se dele que ele é o gêmeo fraterno do Papa Bento XVI, um novo Martin Luther. Diz-se também que Hans Küng poderia ter sido Cardeal, até mesmo mais do que isso. A reportagem é de Nicolas Bourcier e Stéphanie Le Bars e publicada no jornal francês Le Monde, 25-02-2009. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS


Este homem de 81 anos, originário dos Alpes suíços, ordenado sacerdote aos 26 anos, foi um dos mais jovens especialistas chamados para participar do Concílio Vaticano II (1962-1965). Foi criticado pela hierarquia da Igreja católica. Denunciou a atitude de Roma em relação ao casamento dos padres, à contracepção ou à ordenação de mulheres. Em 1979, após a publicação de um livro subversivo sobre a infalibilidade do Papa, o Vaticano lhe retirou o direito de ensinar a teologia. Hans Küng guarda, não obstante, um posto sob medida na Universidade de Tübingen. Ele se tornou o crítico incansável do Papado, encarnado por João Paulo II, depois, a partir de 2005, por Bento XVI.

O Papa alemão foi seu amigo. Eles se cruzaram desde 1957 e no Concílio ambos encarnam a teologia alemã assumida pelos bispos progressistas alemãs. Desde o fim do Concílio, sua apreciação sobre as transformações induzidas pela nova doutrina da Igreja divergem. Joseph Ratzinger, preso à tradição, especialmente litúrgica, se afasta rapidamente dos “excessos” pós-Conciliares da Igreja. Hans Küng, por seu lado, que combateu as manobras conservadoras de alguns membros da Cúria, teria desejado que a hierarquia católica fosse ainda mais longe. A análise dos movimentos de contestação de 1968 acaba por aprofundar o fosso ideológico entre essas duas figuras.

Reforma em profundidade

Em 2005, alguns meses depois da sua eleição, Bento XVI convidou o seu ex-colega de Tübingen. A conversa foi franca, durou quatro horas, mas não desembocou em nada de concreto. Quatro anos depois, Hans Küng persiste em pensar que ele poderia ser o bom conselheiro do Papa, que lhe parece cada vez mais desconectado do mundo. “Ele não evoluiu, e estou certo de que se alguém lhe perguntasse por que nós divergimos, ele diria: ‘É Küng que mudou, não eu!’”.

Mais triste que amargo diante da perigosa tendência que toma, segundo ele, a Igreja católica, o teólogo não cruza os braços e continua a publicar, a ensinar e a pregar. Ele garante, no entanto, que as suas lutas por uma reforma em profundidade da Igreja católica lhe interessam menos que a causa que ele defende ardentemente há cerca de 20 anos: a aproximação entre as religiões. Uma dinâmica suscetível de criar “uma ética universal” aplicável à ciência, ao ambiente, às relações sociais e à paz.

Entrevista - Pe. Hans Küng

'A Igreja corre o risco de converter-se numa seita', afirma teólogo suíço

Entrevista concedida pelo Pe. Hans Küng a Nicolas Bourcier e Stéphanie Le Bars e publicada no jornal francês Le Monde, 25-02-2009. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS



Como você analisa a decisão de Bento XVI de suspender a excomunhão de quatro bispos da corrente integrista do Mons. Lefebvre, um dos quais, Richard Williamson, é um negacionista confesso?

Eu não fiquei surpreso. Desde 1977, numa entrevista a um jornal italiano, Mons. Lefebvre indicava que “Cardeais apóiam a (sua) corrente” e que “o novo Cardeal Ratzinger prometeu intervir junto ao Papa para encontrar uma solução”. Isso mostra que este assunto não é um problema novo nem uma surpresa. Bento XVI sempre falou muito com essas pessoas. Hoje, ele suspende sua excomunhão, porque julga que o tempo chegou. Ele pensou que poderia encontrar uma fórmula para reintegrar os cismáticos, que, conservando inteiramente as suas convicções, poderiam dar a aparência de que estão de acordo com o Concílio Vaticano II. Ele se enganou feio.

Como explica o fato de que o Papa não tenha medido as reações que a sua decisão suscitaria, inclusive para além das declarações negacionistas de Richard Williamson?

A suspensão da excomunhão não foi um erro de comunicação ou de tática, mas ela constituiu um erro de governo do Vaticano. Mesmo que o Papa não tenha tido conhecimento das declarações negacionistas de Mons. Williamson e mesmo que ele próprio não fosse antissemita, cada um sabe que os quatro bispos em questão são antissemitas. Neste assunto, o problema fundamental é a oposição ao Vaticano II, e especialmente a recusa de uma relação nova com o judaísmo. Um Papa alemão deveria ter considerado isso como um ponto central e se mostrar sem ambigüidade sobre o Holocausto. Ele não mediu o perigo. Contrariamente à Chanceler Angela Merkel, que reagiu fortemente.

Bento XVI sempre viveu num meio eclesiástico. Ele viajou muito pouco. Ele permaneceu trancado no Vaticano – que é como o Kremlin de outrora –, onde ele é preservado das críticas. De repente, ele não foi capaz de realizar o impacto de uma tal decisão no mundo. O secretário de Estado, Tarcisio Bertone, que poderia ser um contrapoder, era seu subordinado na Congregação para a Doutrina da Fé; é um homem de doutrina, absolutamente submisso a Bento XVI. Estamos diante de um problema de estrutura. Não há nenhum elemento democrático nesse sistema, nenhuma correção. O Papa foi eleito por conservadores, e hoje é ele quem nomeia conservadores.

Em que medida podemos dizer que o Papa ainda é fiel aos ensinamentos do Vaticano II?

Ele é fiel ao Concílio, à sua maneira. Ele sempre insiste, assim como João Paulo II, sobre a continuidade com a “tradição”. Para ele, esta tradição remonta ao período medieval e helênico. Sobretudo, ele não quer admitir que o Vaticano II provocou uma ruptura, por exemplo, sobre o reconhecimento da liberdade religiosa, combatida por todos os Papas anteriores ao Concílio.

A concepção profunda de Bento XVI é que é preciso acolher o Concílio, mas que convém interpretá-lo; talvez à maneira dos lefebvristas, mas em todo o caso no respeito da tradição e de maneira restritiva. Ele sempre foi um crítico, por exemplo, da liturgia do Vaticano II.

No fundo, Bento XVI tem uma posição ambígua sobre os textos do Concílio, porque ele não se sente cômodo com a modernidade e a reforma. Ora, o Vaticano II representou a integração do paradigma da reforma e da modernidade na Igreja católica. O Mons. Lefebvre nunca a aceitou, e seus amigos na Cúria também não. E nisso Bento XVI tem uma certa simpatia pelo Mons. Lefebvre.

Por outro lado, para mim é escandaloso que, no cinqüentenário do lançamento do Concílio por João XXIII (janeiro de 1959), o Papa não tenha feito o elogio de seu predecessor, mas tenha optado por suspender a excomunhão de pessoas opostas a esse Concílio.

Que tipo de Igreja o Papa Bento XVI está prestes a legar aos seus sucessores?

Eu penso que ele defende a ideia do “pequeno rebanho”. É um pouco a linha dos integristas, que calculam que, mesmo se a Igreja perder muitos de seus fieis, haverá uma Igreja elitista, formada de “verdadeiros” católicos. É uma ilusão pensar que se pode continuar desse jeito, sem padres, sem vocações. Esta evolução é claramente um movimento de restauração. Isso se manifesta na liturgia, mas também em atos e gestos quando diz, por exemplo, aos protestantes que a Igreja católica é a única verdadeira Igreja.

A Igreja católica está em perigo?

A Igreja corre o risco de converter-se numa seita. Muitos católicos não esperam mais nada desse Papa. E isso é muito doloroso.

Você escreveu: “Como um teórico tão dotado, amável e aberto como Joseph Ratzinger pôde chegar a este ponto e tornar-se o Grande Inquisitor romano?” Agora, como?

Eu penso que o choque dos movimentos de contestação de 1968 ressuscitou o seu passado. Ratzinger era conservador. Durante o Concílio ele se abriu, mesmo se já era cético. Com 68, ele retornou a posições muito conservadoras, que ele guarda até hoje.

O atual Papa pode ainda corrigir essa evolução?

Quando ele me recebeu em 2005, ele teve um ato corajoso e eu verdadeiramente acreditei que ele encontraria o caminho para a reforma, mesmo que lentamente. Mas, em quatro anos, ele provou o contrário. Hoje, eu me pergunto se ele é capaz de fazer alguma coisa corajosa. De imediato, seria preciso que reconhecesse que a Igreja católica atravessa uma profunda crise. Depois, ele poderia facilmente fazer um gesto para os divorciados e dizer que sob certas condições eles podem ser admitidos à comunhão. Poderia corrigir sua teologia, que data do Concílio de Nicéia (em 325). Ele poderia dizer no futuro: “Eu aboli a lei do celibato para os padres”. Ele é mais poderoso que o presidente dos Estados Unidos! Ele não precisa prestar contas a uma Corte Suprema! Ele poderia também convocar um novo Concílio.

Um Vaticano III?

Isso poderia ajudar. Uma tal reunião permitiria regular as questões às quais o Vaticano II não respondeu, como o celibato dos padres ou o controle de natalidade. Poderia também prever um novo modo de escolha dos bispos, no qual o povo teria mais participação. A atual crise suscitou um movimento de resistência. Muitos fieis se negam a voltar ao antigo sistema. Mesmo os bispos foram obrigados ao criticar a política do Vaticano. A hierarquia não pode ignorar isso.

Sua reabilitação poderia fazer parte desses gestos fortes?

Seria, em todo o caso, mais fácil que a reintegração dos cismáticos! Mas eu não acredito nisso, porque Bento XVI se sente mais próximo dos integristas do que das pessoas comuns como eu, que trabalharam e aceitaram o Concílio.

25/02/2009

Dom Demétrio Valentini

Carnaval, Quaresma e povo brasileiro

O carnaval do Brasil tem marca registrada. Nenhum outro país faz igual. Onde querem imitar, só conseguem arremedos sem ritmo e sem graça.

O carnaval se torna, assim, manifestação típica e profunda da identidade do povo brasileiro. As escolas de samba do Rio, o frevo de Recife, ou o carnaval da Bahia, não fazem só coreografias e movimentos que revelam a agilidade e o encanto físico das pessoas. Junto com a beleza do corpo, o carnaval revela a riqueza da alma brasileira.

Não se entende o carnaval brasileiro, sem levar em conta a peculiar composição étnica do povo brasileiro. Ela é fruto de um longo e complexo processo de integração racial, feito muitas vezes ao arrepio da ética, mas que resultou numa surpreendente realidade humana e cultural, que constitui, sem sombra de dúvida, a riqueza maior deste país.

O Brasil tem um testemunho a dar ao mundo, de vivência harmônica da diversidade, de integração das raças e das culturas, e da fusão dos contrastes em novas expressões de vida.

No fórum das migrações, realizado na Espanha no ano passado, o sociólogo francês Samir Nair surpreendeu a todos, ao afirmar que nenhuma solução dada aos migrantes é adequada, a não ser que se realize a "solução brasileira".

Alguns países chegam a tolerar a diversidade racial, e a reconhecê-la. Mas permanece a separação. Ao passo que no Brasil se realizou uma profunda miscigenação racial, como nenhum outro país realizou. Esta seria a "solução brasileira", proposta pelo sociólogo francês.

Para entender o carnaval brasileiro, é preciso ter presente o longo itinerário de integração racial, que resultou no povo brasileiro que agora somos. A miscigenação fez parte da colonização portuguesa, iniciou com o componente indígena, se aprofundou com a participação africana, e continuou com a chegada dos migrantes, sobretudo europeus, mas também asiáticos.

A contribuição mais sutil, e mais difícil de mensurar, é a indígena. Ela foi simbolizada claramente num episódio, que ainda hoje espelha seu propósito e sua consistência. Em 1531 a coroa portuguesa resolveu povoar o Brasil. Enviou uma esquadra de cinco navios, comandada por Martin de Souza, trazendo 400 homens, e nenhuma mulher. A intenção era evidente. As mulheres seriam encontradas aqui, entre as indígenas.

Estava lançada a fórmula do povo brasileiro. A contribuição indígena não se limitou ao sangue que passou a circular nos mamelucos. Foi muito mais profunda e sutil. A casa passou a ter duas partes bem distintas. Na sala se falava português e se cultivava a consciência de pertença à coroa. Na cozinha se transmitiam os valores culturais indígenas, expressos não só nas comidas típicas destes trópicos, mas também nos sentimentos religiosos e na cosmovisão própria dos povos nativos.

Com a chegada posterior dos três milhões de escravos e escravas, o processo de miscigenação ficou mais explícito e mais evidente, com repercussões raciais e culturais mais duradouras e decisivas.

Este processo se acentuou com a chegada dos migrantes de outros países, sobretudo no final do século 19.

Pois bem, é no contexto desta complexa e diversificada composição ética que precisamos situar o carnaval, se queremos nos dar conta de sua consistência humana e cultural. O mundo se encanta com sua beleza exterior e sua manifestação episódica.

O grande desafio do povo brasileiro é não ficar só na exterioridade do carnaval. A experiência única de sua profunda miscigenação racial, se constitui em precioso testemunho de abertura, de tolerância, de convivência fraterna, de alegria de viver, que precisa se traduzir em justiça social e em respeito à dignidade da pessoa humana.

O povo brasileiro não pode limitar ao carnaval a afirmação de sua identidade. Ele precisa traduzi-la na efetiva realização da democracia econômica e social.

O carnaval, breve e fugaz, precisa ser complementado pela quaresma, longa e consistente, feita da busca de valores autênticos e perenes.

Fonte: ADITAL

20/02/2009

Irmã Ivone Gebara

Muitas mitras e quase ausência do povão de Dom Helder

Se D. Helder Camara estivesse vivo teria completado ontem (7 de fevereiro/2009) cem anos de vida. Pensando nele diferentes grupos, a Arquidiocese de Olinda e Recife e a CNBB organizaram uma celebração eucarística para lembrar a vida do Dom, como era carinhosamente chamado. Eu estava lá diante da Igreja das Fronteiras onde ele passara grande parte de sua vida, sentada no meio da multidão. O sol das 16 horas estava ainda intenso e, muitas pessoas usavam os lenços onde os cantos da missa haviam sido impressos, como protetores de cabeça. Eu era uma delas.

Não sei se foi o sol muito quente ou se foram meus habituais demônios que se manifestam em situações especiais, mas estava muito incomodada com aquela celebração. Havia muitas mitras. Além delas, alvas, estolas e hábitos religiosos masculinos tirados de velhos baús. Havia muita gente, mas senti uma falta grande das comunidades populares, do povão de D. Helder, daqueles que adoravam tocá-lo e receber seu abraço e seu sorriso aberto. Meus demônios continuaram me dando incômodas agulhadas, mostrando-me detalhes pitorescos do público presente que desviavam a minha atenção da celebração eucarística. Fechei então os olhos e podia fazê-lo sem medo de ser interpretada como adormecida em plena missa, pois usava meus óculos escuros.

De repente, entregue aos meus botões, foi como se minha vista clareasse e eu vi junto à mesa do altar a Lucia, a Leda, a Zélia, a Zezita, a Severina, a Lucinha, a Menininha, a Dorinha, a Catarina, a Vanda, a Belinha, a Helena e tantas outras, grandes colaboradoras e amigas do Dom... Todas estavam sentadas em torno da mesa com D. Helder, D.Lamartine, com o Tonho, o Joãozinho, o Biu, o Betinho, o Manuel, o Zé do Chapéu, todos agradecendo os vários dons da vida, fazendo memória de Jesus e comendo juntos o pão. E todos cantavam "Prova maior de amor não há que doar a vida pelas irmãs e irmãos". E de seu canto saia uma emocionante força de verdade capaz de tocar os corações. E as palavras não eram apenas um ajuntamento de palavras bonitas capazes de embriagar. Parecia que elas nutriam o coração. Eram palavras pronunciadas com autoridade, como a de quem tenta viver o que diz. Havia flores em todos os cantos e crianças misturadas a velhos e jovens. Havia o calor do sol e dos corações. Ouvi jovens declamando poemas escritos pelo poeta Helder, e crianças narrando algumas de suas parábolas. Imaginem, vi até o presidente Lula lendo um decreto-lei que instituía Dom Helder como patrimônio da História nacional. Todas as brasileiras e brasileiros das novas gerações deveriam conhecê-lo desde a escola primária e tomá-lo como exemplo de luta pela cidadania e pelo amor à humanidade.

De repente um "Oremos" muito possante me abalou e me fez abrir os olhos e vi que aquele repente imaginário estava me desviando da celebração daquele momento. Voltei e vi diante de mim, de novo, o espetáculo de mitras e um báculo, símbolo do poder que agora se impunha como se fosse o representante da ordem divina. Fiquei com pena de ter acordado de meu sonho instantâneo.

Sem querer, mas talvez até querendo, fiquei pensando que em 25 anos a instituição eclesiástica conseguiu roubar do povo a memória revolucionária de Dom Helder. Ontem, o formalismo celebrativo hierárquico se impunha. Tudo como manda o antigo figurino romano. Nada das outras igrejas cristãs misturadas com as autoridades da "nossa" igreja. Anglicanos, Batistas, Luteranos, Presbiterianos podiam ficar junto com os participantes na grande Assembléia. O pessoal das religiões africanas que nem se aproxime. Não houve gestos ecumênicos. Os da elite religiosa, os que adoram usar alvas e estolas para mostrar seu distinto sacerdócio, estes sim estavam no alto, olhando para os presentes e olhados por eles. Ou, estavam nos primeiros lugares, próximos ao altar, para evidenciar que apesar de falarem de povo de Deus, eles se consideravam um pouquinho mais povo de Deus, ao menos naquele momento. Não entendo porque concelebrar significa acumular no altar padres e bispos todos com alvas e estolas e mitras a atravancarem o caminho uns dos outros. Não seria isso co-presidência? Por que não sermos irmãs e irmãos celebrando juntos embora um ou outra esteja presidindo? Estranhos hábitos clericais! Estranhos poderes que insistem em marcar inconsistentes diferenças!

Não celebro a vida de Dom Helder no saudosismo, mas na perplexidade em relação a nossa capacidade de fazer com que a história sirva em muitas situações aos interesses do poder estabelecido - religioso e político. Este poder não gosta de novidades. Não gosta da memória de quem foi crítico de suas imposições. Usa as pessoas enquanto podem favorecer a seus intentos promocionais e fazer adeptos de suas ideologias. Teme que alguém queira mudar as regras do jogo. Que o sagrado seja menos sagrado se não se respeitarem as tradicionais rubricas e hierarquias. Continuam fornecendo o mesmo pão e o mesmo circo, pois distraem e ao mesmo tempo pensam ordenar a vida do povo. E ao fazerem isso pensam igualmente nos impedir de pensar. Mas, a voz dos oprimidos sempre irrompe no silêncio e nos ensina sempre de novo que "quando os problemas se tornam absurdos, os desafios se tornam apaixonantes" (D. Helder). E então, só então "um deserto poderá ser fértil".

Apesar dos pesares, somos capazes de dar Graças à Vida que nos deu tanto. E entre o tanto que nos deu, nos deu o irmão Helder Camara e tantas outras irmãs e irmãos que, como ele, fizeram de suas vidas sementes de vida. Há muita boa nova sendo anunciada pelo campo e pela cidade, pelas montanhas e planícies. Quem tiver ouvidos afinados no amor será capaz de ouvir algo bonito sendo anunciando e até sentir a brisa suave que sopra lentamente devolvendo vida e esperança a muita gente. Uma nova sinfonia de muitos mundos está sendo executada. E as notas originais de nosso querido Dom estão em todas as claves de execução, unindo-se a mil outras notas de justiça e compaixão, únicas capazes de sustentar a tonalidade simples e complexa do Canto do Universo.

Fonte: ADITAL

17/02/2009

Dom Pedro Casaldáliga

HOJE NÃO TENHO MAIS ESSES SONHOS»,diz o cardeal


O cardeal Carlo M. Martini, jesuíta, biblista, arcebispo que foi de Milão e colega meu de Parkinson, é um eclesiástico de diálogo, de acolhida, de renovação a fundo, tanto na Igreja como na Sociedade. Em seu livro de confidências e confissões Colóquios noturnos em Jerusalém, declara: Antes eu tinha sonhos acerca da Igreja. Sonhava com uma Igreja que percorre seu caminho na pobreza e na humildade, que não depende dos poderes deste mundo; na qual se extirpasse de raiz a desconfiança; que desse espaço às pessoas que pensem com mais amplidão; que desse ânimos, especialmente, àqueles que se sentem pequenos o pecadores. Sonhava com uma Igreja jovem. Hoje não tenho mais esses sonhos. Esta afirmação categórica de Martini não é, não pode ser, uma declaração de fracasso, de decepção eclesial, de renúncia à utopia. Martini continua sonhando nada menos que com o Reino, que é a utopia das utopias, um sonho do próprio Deus.

Ele e milhões de pessoas na Igreja sonhamos com a outra Igreja possível, ao serviço do outro Mundo possível. E o cardeal Martini é uma boa testemunha e um bom guia nesse caminho alternativo; o tem demonstrado.

Tanto na Igreja (na Igreja de Jesus que são várias Igrejas) como na Sociedade (que são vários povos, várias culturas, vários processos históricos) hoje mais do que nunca devemos radicalizar na procura da justiça e da paz, da dignidade humana e da igualdade na alteridade, do verdadeiro progresso dentro da ecologia profunda. E, como diz Bobbio, é preciso instalar a liberdade no coração mesmo da igualdade; hoje com uma visão e uma ação estritamente mundiais. É a outra globalização, a que reivindicam nossos pensadores, nossos militantes, nossos mártires, nossos famintos...

A grande crise econômica atual é uma crise global de Humanidade que não se resolverá com nenhum tipo de capitalismo, porque não é possível um capitalismo humano; o capitalismo continua a ser homicida, ecocida, suicida. Não há modo de servir simultaneamente ao deus dos bancos e ao Deus da Vida, conjugar a prepotência e a usura com a convivência fraterna. A questão axial é: Trata-se de salvar o Sistema ou se trata de salvar à Humanidade? A grandes crises, grandes oportunidades. No idioma chinês a palavra crise se desdobra em dois sentidos: crise como perigo, crise como oportunidade.

Na campanha eleitoral dos EUA se arvorou repetidamente «o sonho de Luther King», querendo atualizar esse sonho; e, por ocasião dos 50 anos da convocatória do Vaticano II, tem-se recordado, com saudade, o Pacto das Catacumbas da Igreja serva e pobre. No dia 16 de novembro de 1965, poucos dias antes da clausura do Concílio, 40 Padres Conciliares celebraram a Eucaristia nas catacumbas romanas de Domitila, e firmaram o Pacto das Catacumbas. Dom Hélder Câmara, cujo centenário de nascimento estamos celebrando neste ano, era um dos principais animadores do grupo profético. O Pacto em seus 13 pontos insiste na pobreza evangélica da Igreja, sem títulos honoríficos, sem privilégios e sem ostentações mundanas; insiste na colegialidade e na corresponsabilidade da Igreja como Povo de Deus e na abertura ao mundo e na acolhida fraterna.

Hoje, nós, na convulsa conjuntura atual, professamos a vigência de muitos sonhos, sociais, políticos, eclesiais, aos quais de jeito nenhum modo podemos renunciar. Seguimos rechaçando o capitalismo neoliberal, o neoimperialismo do dinheiro e das armas, uma economia de mercado e de consumismo que sepulta na pobreza e na fome a uma grande maioria da Humanidade. E seguiremos rechaçando toda discriminação por motivos de gênero, de cultura, de raça. Exigimos a transformação substancial dos organismos mundiais (a ONU, o FMI, o Banco Mundial, a OMC...). Comprometemo-nos a vivermos uma ecologia profunda e integral, propiciando uma política agrária-agrícola alternativa à política depredadora do latifúndio, da monocultura, do agrotóxico. Participaremos nas transformações sociais, políticas e econômicas, para uma democracia de alta intensidade.

Como Igreja queremos viver, à luz do Evangelho, a paixão obsessiva de Jesus, o Reino. Queremos ser Igreja da opção pelos pobres, comunidade ecumênica e macroecumênica também. O Deus em quem acreditamos, o Abbá de Jesus, não pode ser de jeito nenhum causa de fundamentalismos, de exclusões, de inclusões absorventes, de orgulho proselitista. Chega de fazermos do nosso Deus o único Deus verdadeiro. Meu Deus, me deixa ver a Deus?.

Com todo respeito pela opinião do Papa Bento XVI, o diálogo interreligioso não somente é possível, é necessário. Faremos da corresponsabilidade eclesial a expressão legítima de uma fé adulta. Exigiremos, corrigindo séculos de descriminação, a plena igualdade da mulher na vida e nos ministérios da Igreja. Estimularemos a liberdade e o serviço reconhecido de nossos teólogos e teólogas. A Igreja será uma rede de comunidades orantes, servidoras, proféticas, testemunhas da Boa Nova: uma Boa Nova de vida, de liberdade, de comunhão feliz. Uma Boa Nova de misericórdia, de acolhida, de perdão, de ternura, samaritana à beira de todos os caminhos da Humanidade. Seguiremos fazendo que se viva na prática eclesial a advertência de Jesus: Não será assim entre vocês (Mt 21,26). Seja a autoridade serviço. O Vaticano deixará de ser Estado e o Papa não será mais chefe de Estado. A Cúria terá de ser profundamente reformada e as Igrejas locais cultivarão a inculturação do Evangelho e a ministerialidade compartilhada. A Igreja se comprometerá, sem medo, sem evasões, com as grandes causas de justiça e da paz, dos direitos humanos e da igualdade reconhecida de todos os povos. Será profecia de anuncio, de denúncia, de consolação. A política vivida por todos os cristãos e cristãs será aquela expressão mais alta do amor fraterno (Pio XI).

Nós nos negamos a renunciar a estes sonhos mesmo quando possam parecer quimera. Ainda cantamos, ainda sonhamos». Nós nos atemos à palavra de Jesus: Fogo vim trazer à Terra; e que mais posso querer senão que arda (Lc 12,49). Com humildade e coragem, no seguimento de Jesus, tentaremos viver estes sonhos no dia a dia de nossas vidas. Seguirá havendo crises e a Humanidade, com suas religiões e suas Igrejas, seguirá sendo santa e pecadora. Mas não faltarão as campanhas universais de solidariedade, os Foros Sociais, as Vias Campesinas, os movimentos populares, as conquistas dos Sem Terra, os pactos ecológicos, os caminhos alternativos da Nossa América, as Comunidades Eclesiais de Base, os processos de reconciliação entre o Shalom e o Salam, as vitórias indígenas e afro e, em todo o caso, mais uma vez e sempre, eu me atenho ao dito: a Esperança.

Cada um e cada uma a quem possa chegar esta circular fraterna, em comunhão de fé religiosa ou de paixão humana, receba um abraço do tamanho destes sonhos. Os velhos ainda temos visões, diz a Bíblia (Jl 3,1). Li nestes dias esta definição: A velhice é uma espécie de postguerra; não precisamente de claudicação. O Parkinson é apenas um percalço do caminho e seguimos Reino adentro.

Fonte: Paróquia Santo Afonso

'Quo vadis, Benedictus?’

A guerra cultural de Ratzinger contra o relativismo marca o seu pontificado com o selo da intransigência e a ambição de cortar o debate público. Com erros garrafais como o perdão ao negacionista Williamson e os lefebrianos ou a ingerência no caso Eluana Englaro. A reportagem é de Miguel Mora e publicada pelo jornal El País, 15-02-2009.
Fonte: UNISINOS





Bento XVI é um papa pensador. Intelectual, teólogo, historiador, tem fama de escrever livros e discursos bem acabados, de uma grande erudição. Ele é o homem que decidiu que a religião, isto é Deus, deve de deixar de ser um complemento espiritual e ocasional da vida das pessoas para dar o salto para a frente e colocar-se, sempre e em todas os temas, no primeiro plano do debate público.

Esta bipolaridade resulta um tanto estranha. Ratzinger é um papa que se deixa ver pouco. Passa a maior parte do tempo no seu gabinete, lendo e escrevendo. Agora está terminando a segunda parte da sua obra sobre Jesus Cristo e a sua primeira encíclica social, que deve ser publicada no próximo mês, lá pelo dia São José, dia 19 de março. E viaja, coisa da idade (84 anos), bastante menos que o seu hiperativo antecessor. O Papa gosta de ficar sozinho.

Um vaticanista italiano, Marco Tossati, escreveu, recentemente, no jornal La Stampa o artigo “ A solidão do papa Ratzinger” comparando o seu estilo de vida e de trabalho com o de João Paulo II. “Deste, os críticos diziam que o seu apartamento parecia uma taberna, sempre entrando e saindo gente. Agora se diz que o apartamento papal parece uma câmara blindada”. Se essa imagem de solidão abstraída aflige e despista os vaticanistas de meio mundo, o que dizer dos cidadãos comuns?

Em países como, por exemplo, o seu, a Alemanha, a opinião pública recebeu a sua chegada ao trono de São Pedro como a alegre palavra de ordem “Somos Papas!”. Hoje, as coisas mudaram tanto que há poucos dias um jornal escrevia, falando de Ratzinger: “Poderia ter sido o Obama do catolicismo, mas está demonstrando que é como Bush”. A frase do Süddeutsche Zeitung é, talvez, demasiado otimista na sua primeira parte, mas no seu final resume bem a imagem que, depois de três anos de ser eleito Papa, se formaram muitos cidadãos sobre Joseph Ratzinger.

Sobretudo, ultimamente. Ultimamente parece que o Vaticano já não é mais o que era. Se poderia dizer que foi tomado por um exército de inimigos dispostos a acabar com o prestígio do Estado pontifício.

No dia 21 de janeiro, Bento XVI perdoou a quatro bispos lefebrianos, todos pré-conciliares, isto é, inimigos inveterados do Concílio Vaticano II que abriu o catolicismo e o atualizou. Todos tinham sido consagrados pelo bispo integrista e rebelde Marcel Lefebvre, em 1988, e foram excomungados por João Paulo II imediatamente. Um deles, o britânico Richard Williamson, é próximo da ideologia neonazista. Os demais são somente ultraconservadores. Odeiam os judeus e os muçulmanos, não acreditam no diálogo inter-religioso, e sustentam que todos os papas, desde João XXIII em diante, não são legítimos.

A decisão de Ratzinger de incorporar os fanáticos, desorientou os setores progressistas e moderados da Igreja e gerou um clamor mundial. A empatia e a popularidade do Papa sofreu um desgaste indiscutível. A irada reação da primeira-ministra Ângela Merckel, que exigiu explicações de Ratzinger pelo perdão a Williamson, talvez seja o melhor sintoma do alcance do erro cometido.

O estupor inicial dos bispos que tratam de melhorar o diálogo com o mundo judeu, a sublevação de 60 católicos alemães, o congelamento momentâneo das relações do Rabinato de Israel e o Vaticano, e o processo aberto na Alemanha contra Williamson acabaram forçando o Papa a voltar atrás. Williamson não voltará à Igreja se não se retratar.

Mas, mais além da questão ideológica, o cancelamento do castigo aos lefebrianos deixou clara a caótica gestão do assunto feita pela sempre eficaz diplomacia vaticana.

Depois de duas semanas, é difícil encontrar uma explicação razoável para o que aconteceu. Isso abriu a porta para as interpretações. Trata-se de uma provocação, de um mero erro de cálculo, de uma agressão aos setores mais progressistas? Talvez, tudo isso, ao modo de Lênin: “Que falem mal de nós, mas o importante é que falem”?

Ratzinger justificou sua ação esgrimindo motivos estritamente técnicos, “internos”. Moveu-se unicamente, explicou, por sua vontade de “unir a Igreja” e a de evitar o “prolongado sofrimento” dos bispos excomungados. Razões humanitárias, portanto.

Talvez por se tratar de um “assunto interno”, a sala de imprensa do Vaticano não foi informada pelos responsáveis da decisão. A sequência temporal delata o nível de negligência: a assinatura da revogação da excomunhão foi dada no dia 21 de janeiro; dois dias antes, dia 19, Der Spiegel tinha noticiado a entrevista-bomba que Williamson concedeu a uma televisão sueca, em que negava o Holocausto dos judeus e a existência das câmaras de gás.

É possível que ninguém se informara disso no Vaticano? Por acaso o Papa e o seu secretário pessoal, monsenhor Georg Genswein, ambos bávaros, não leem a imprensa alemã? Não foi possível adiar o perdão até que Williamson se retratasse? Ou se quis manter o debate à luz do sol, cara a cara com os lefebrianos, os judeus e Ângela Merckel?

O Papa recebeu, na última quinta-feira, a presidência das Organizações Judaicas Americanas, e pediu perdão, novamente, pelo Holocausto, “um crime contra Deus e a humanidade”, disse. Anunciou que está preparando para maio a viagem para a Terra Santa e espera que essa visita seja “um sinal de paz” para a região.

O encontro serviu para encerrar, no momento, a ferida judaica. O rabino David Rosen, presidente do Comitê Judeu Internacional, deu por encerrado o caso Williamson, e revelou que o Papa lhes assegurou que “o catolicismo não pode admitir que alguém negue o Holocausto e nunca o admitirá”.

Rosen, grande artífice do diálogo entre católicos e judeus, acredita que a crise trouxe graves danos mas também algumas vantagens. “No final, reforçamos as relações inter-religiosas, e acredito que a desastrosa gestão administrativa do perdão serviu para que o Vaticano seja agora mais rigoroso na admissão da Fraternidade São Pio X. Agora nada mais se fará às escondidas, e o processo será responsável e transparente. E acredito que veremos sérios conflitos internos na organização dos lefebrianos”.

O incisivo rabino Rosen tem a impressão de que o problema de fundo que vive o catolicismo na atualidade é a sua atitude ante o Concílio Vaticano II. “Está em curso um debate sobre a interpretação do concílio, e as teses mais conservadoras estão ganhando terreno”.

Sobre as faltas de comunicação dentro da Santa Sé, ninguém tem dúvidas. O próprio Federico Lombardi, diretor da Sala de Imprensa vaticana, as admitiu numa entrevista ao jornal francês La Croix. Lombardi reconheceu que a “má comunicação” interna originou a confusão, e responsabilizou disso o cardeal encarregado deste processo, o colombiano Darío Castrillón, por se centrar nas opiniões de Bernard Fellay, o superior da Fraternidade de São Pio X, e não ter tido em conta as de Williamson. “Sem dúvida, as pessoas que administraram a questão não sabiam da gravidade das posições de Williamson. O certo é que o Papa as ignorava”.

Mas há outras coisas que não se compreendem. Na Argentina, por exemplo, o país escolhido pelo lefebrismo para se irradiar por toda a América, a reabilitação tinha sido recebida por muitas vítimas da ditadura como uma ofensa. Não se esquece que Lefebvre viajou e colaborou com a ditadura militar, e que durante os anos tristes desta, ergueu quatro conventos e duas igrejas no país (numa delas, em La Reja, vive Williamson).

Castrillón, presidente da Comissão Pontifícia Ecclesia Dei, conseguiu que Bento XVI recebesse o superior Fellay em 2005 e 2007. Segundo este relatou, na segunda audiência mencionou entre as conquistas da Fraternidade a denúncia que levou à proibição em Córdoba, na Argentina, da pílula do dia seguinte pela juíza Cristina Garzón, e a “incrível atitude” do bispo de Córdoba, Carlos Ñañez, que, assinalou, “nos chamou de terroristas”. O Papa lhe respondeu que a forma de pertencer à Igreja Católica é “interpretar o espírito do Concílio Vaticano II à luz da Tradição”.

A entrevista do padre Lombardi revela fissuras na equipe do Papa, falta de comunicação entre as diferentes instâncias da cúria, escassez de reflexos na preparação e prevenção de decisões problemáticas. Uma vez pronto o perdão, Castrillón não informou a decisão ao cardeal Walter Kasper, encarregado do diálogo com os judeus. Kasper, que conhece muito bem tanto os rabinos como os lefebrianos, teria podido lhe advertir que o anti-semitismo, dentro da Sociedade Pio X, não se limita a Williamson. Calcula-se que há 500 padres sob a influência de Lefebvre. O Vaticano sabe quantos destes comungam das idéias do britânico irredutível?

Porque não se trata somente de anti-semitismo. Entre outras perdas, Williamson sustentou que a queda das Torres Gêmeas foi um auto-tentado, que judeus e mórmons são “inimigos de Cristo”, que é um disparate que as mulheres usem calças compridas ou vestido curto, que Pinochet foi um grande estadista...

Na Itália, a Fraternidade São Pio X anunciou no dia 6 de fevereiro a expulsão, por “graves motivos de disciplina” do padre Floriano Abrahamowicz. A razão: suas reiteradas declarações negacionistas.

Na Áustria, como na Alemanha, o número de apostasias disparou. Na quarta-feira passada, o arcebispo de Salzburg, Alois Kothgasser, se perguntava, num artigo publicado na imprensa se “é necessário que a Igreja católica seja purificada para ver-se reduzida a uma seita na qual ficaria um pequeno punhado de fiéis à linha oficial”.

No mesmo dia, na conferência de Decanos da diocese de Linz, 31 dos 35 religiosos rechaçaram a nomeação, pelo Papa, do ultraconservador Gerhard Maria Wagner como bispo auxiliar. Wagner afirmou em 2004 que o tsunami da Tailândia e o furacão Katrina que devastou Nova Orleans deviam ser considerados castigos divinos. O clero austríaco, que tem fama de conservador e submisso a Roma, fez saber que negava a nomeação para “defender a credibilidade da Igreja”. “Quando não há confiança na Igreja local”, disse o bispo Kothgasser, “a confiança na autoridade central da Igreja desaparece”.

Mas deixando de lado erros pontuais de gestão, a linha teológica que marca o perdão dos lefebrianos parece totalmente coerente com a dura linha ideológica sempre mantida por Ratzinger, que ofendeu os muçulmanos (no discurso de Regensburg), enfurecido os judeus e magoado os homossexuais.

Sendo cardeal, Ratzinger disse que a homossexualidade constituía “uma tendência para um mal moral intrínseco”. Agora negou o apoio do Vaticano à declaração da ONU sobre os direitos dos homossexuais.

Todo mundo sabe Ratzinger é um homem de ideias conservadoras, especialmente nos costumes. Revelou-se como um grande amante da tradição litúrgica pré-conciliar, e isso o aproxima muito à Fraternidade São Pio X. Voltou a missa em latim, inclusive com as costas para o povo, e recuperou a oração das Sexta-feira Santa (que pede para que os judeus abracem a verdadeira fé). Além disso, trouxe de volta os tempos das indulgências plenárias e editou um catálogo de proibições sobre bioética que não permite que casais católicos recorram às técnicas de fertilização.

A última batalha foi o trágico e lamentável caso Eluana Englaro, que resume de forma exemplar a sua forma de ver as coisas. Na busca de influir no debate público, não há aliado que seja mau. Ratzinger não duvidou em enviar a sua Cúria para as trincheiras do pagão Silvio Berlusconi como o fim de converter em “verdugo” e “assassino” o sofrido pai de Eluana. Como afirmam os blogueiros italianos, o estranho par se fundiu no Berlustzinger. Ou em Ratzusconi. É possível imaginar uma aliança mais chocante que a de Berlusconi para um Papa sério, intelectual e alemão?

Ainda que a Igreja esteja contra o prolongamento artificial da vida, e mesmo que seu antecessor pedisse aos médicos que o deixassem em paz pedindo que o deixassem ir “para a casa do Pai”, Ratzinger se mostrou contrário que Eluana fosse desconectada da sonda que a manteve viva durante 17 anos, ignorando a dor de uma família que passou um calvário e exercendo pressão, por meio de seu número dois, Tarcísio Bertone, contra o Tribunal Supremo e o presidente da República italiana.

Não se pode negar uma coisa: o Vaticano trabalhou a fundo o tema. Converteu um tema privado num assunto de Deus. Pressionou, aplaudiu, criticou, foi para a televisão, lançando anátemas contra o pai, os médicos e os juízes, deslegitimando o Estado de Direito, mobilizando os católicos dentro e fora do Parlamento... Inclusive Bertone chamou pessoalmente o presidente da República para lhe transmitir seu desgosto por não ter assinado o decreto salva Eluana... Ou comigo, ou contra mim.

Mas, absolutamente, isto é uma surpresa. A coisa vem de longe. Na homilia Pro eligendo Papa, com a que o cardeal Ratzinger abriu o conclave de 2005, donde sairia como Bento XVI, toda a ênfase recaia na frase: “A ditadura do relativismo”.

Hoje se sabe que o principal objetivo de Ratzinger é libertar o Ocidente dessa ditadura e vencer a guerra cultural contra o laicismo, sobretudo na Espanha e na Itália.

O agressivo movimento do Vaticano encontrou, nesta vez, a oposição de alguns destacados membros da Igreja italiana. Giuseppe Casale, bispo emérito de Foggia, se afastou da linha oficial, que afirma que a suspensão da alimentação artificial é eutanásia e não prolongamento artificial da vida. Mas foram dissensões testemunhais, nada mais. De resto, as fileiras estavam cerradas.

Mas o que o Vaticano tem a ganhar com esta peleja que a fez ficar com a imagem de um grupo de pressão incapaz de sentir piedade? A importância do caso é singular. A Igreja fez da necessidade, virtude, e a estratégia de Ratzinger tem sido inteligente e pragmática. O Vaticano sempre se negara a legislar na Itália sobre o testamento biológico. Ao surgir o caso, com uma sentença inapelável do Supremo, viu que a coisa já não tinha remédio. Assim que elevou o clima emotivo e bombardeou o país com argumentos simples e dogmáticos: “A vida é um bem não disponível”.

Criado o clima preciso, pressionou o Governo italiano para que elabore uma lei do fim da vida muito favorável a seus interesses morais e econômicos. Além disso, olhando a longo prazo. A norma final dirá provavelmente que os médicos não podem negar alimentação e hidratação a nenhum paciente, salvo que este o tenha especificado antes. As consequências serão terríveis. A tecnologia médica atual permite manter vivos os doentes vegetativos durante décadas. Dos 2.000 que estão nessa condição hoje, na Itália, a maior parte está internada em instituições religiosas.

Guerra é guerra, e o caso Englaro foi somente a última batalha. Aumentou a presença da Igreja católica no debate público. Se a gente conversa com leigos anticlericais, a dúvida os assalta: Será que este octogenário alemão, este Papa erudito e afastado das massas, está preparado e é capaz de dirigir a Igreja do multicultural, obamista e tecnológico século XXI? Se a gente fala com católicos, não há dúvidas: “Pois é claro que sim”.

Em 2005, o jornalista dos EUA John Allen contava no seu livro "A ascensão de Bento XVI" que, sendo cardeal, Ratzinger leu o livro After virtue, de Alasdair MacIntyre (1981) que deu a orientação intelectual para a revolução conservadora de Ronald Reagan. MacIntyre fazia paralelismos entre a decadência do Império Romano e a atual situação do Ocidente, sustentando que em ambos havia uma crise moral, e acabava pedindo “um novo São Bento”.

São Bento foi o fundador dos mosteiros que preservaram a cultura greco-romana e os valores judeu-cristãos, isto é, a Europa, durante os séculos de “barbárie”. Mas Ratzinger não quer mosteiros apartados. “O Papa não propõe que se abandone o mundo, mas que que se o desafie”, escreveu Allen.

A chave do seu pontificado é esse desafio. O Papa concebe a cultura laica e liberal dominante como um demônio semelhante, ainda que benevolente, ao nazismo. E o seu desafio não é somente fazer com que os fiéis aceitem o seu magistério moral, mas colocar Deus no centro do debate. Paradoxalmente, o talvez não, a força dos atos o foi colocando numa posição próxima da ultradireita. Mas não devemos descartar que isto seja, também, uma forma de ter mais presença.

Um dos fundamentos doutrinais mais significativo de Bento XVI é a Spe salvi, sua segunda encíclica, de dezembro de 2007. Um texto de 77 páginas que gerou uma enorme polêmica porque alguns dos seus conceitos recuperavam o integrismo pré-conciliar. Aí está a essência do pensamento de Ratzinger. A história da humanidade mudou com a Revolução Francesa. A razão humana é insuficiente. “Sem Deus, o mundo é obscuro e enfrentamos um futuro tenebroso”. A fé não deve ser uma questão privada. O cristianismo deve voltar a ser militante e colocar-se no centro da sociedade.

“Um mundo que administra a justiça por si mesmo é um mundo sem esperança”, afirma a encíclica. Uma sociedade estritamente laica, e especialmente se é atéia, não é capaz de se administrar a si mesma e vai para uma rua sem saída. Teocracia.

O lugar onde esta batalha parece mais perdida é a Espanha. Allen escreveu no seu livro que a Espanah seria para o novo Papa, “no terreno cultural, o que num sentido militar foi nos anos trinta: o cenário de uma guerra de ensaio, onde as forças dos grandes blocos provariam as suas armas”. Uma semana depois da triunfal visita a Madrid do cardeal Tarcisio Bertone, com o Governo de José Luis Rodríguez Zapatero e a Coroa unidos na recepção cordial, e para muitos humilhante, até o desnorteado PP de Rajoy sabe que a estratégia do Papa tomou um perfil novo.

Depois da guerra dos últimos anos, com os bispos reunidos em manifestação permanente, chegaram os sorrisos e a “colaboração”. A nova estratégia não deveria enganar ninguém. Como disse um egrégio ex-vaticanista espanhol, “o Vaticano e as conferências episcopais são expertas no jogo do policial bom e o policial mau; é preciso ser muito inocente para crer que são distintos. Os bispos se limitam a cumprir o seu papel, e fazem o que o Papa lhes pede que façam”.

Ratzinger é um Papa solitário. Ele gosta de trabalhar em seu gabinete blindado. Comete erros. Escreve textos incompreensíveis. Para alguns, ele parece ser um integrista. Talvez o Vaticano saiu desprestigiado dos seus últimos movimentos. Mas não se enganem: ele é qualquer coisa, mas não é bobo.

16/02/2009

Um duplo desastre no Vaticano: de governo e de comunicação

Este é o balanço da suspensão da excomunhão dos quatro bispos lefebvristas. A reportagem é de Sandro Magister publicada no jornal Espresso, 4-02-2009. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS



Alguns dias após os fatos, a suspensão da excomunhão dos quatro bispos lefebvristas se revela, no Vaticano, mais como um grave duplo erro: de governo e de comunicação. No meio do grave erro o Papa Bento XVI se viu como o mais exposto, praticamente só.

Dentro e fora da Cúria são numerosos os que jogam a culpa de tudo no Papa. Com efeito, foi sua, do Papa Bento XVI, a decisão de oferecer aos bispos lefebvristas um gesto de benevolência. A suspensão da excomunhão era a continuação de outros gestos anteriores de abertura, também estes desejados pessoalmente pelo Papa, o último dos quais foi o Motu Proprio Summorum Pontificum, de 17 de julho de 2007, que libera o rito antigo da missa.

Como antes, desta vez Bento XVI também não quis nada em troca, previamente. As suas foram até agora aberturas unilaterais. Os críticos do Papa incidiram sobre esse ponto para acusá-lo de ingenuidade, ou de ter cedido, ou inclusive de querer levar a Igreja de volta ao tempo anterior ao Concílio Vaticano II.

Na realidade, a intenção de Bento XVI foi explicada por ele mesmo com absoluta clareza num dos principais discursos de seu Pontificado, aquele lido na Cúria romana no dia 22 de dezembro de 2005. Naquele discurso o Papa Ratzinger sustenta que o Vaticano II não marcava nenhuma ruptura com a tradição da Igreja, pelo contrário, estava em continuidade com a tradição também ali onde parecia marcar um sobressalto em relação ao passado, como por exemplo, quando reconhecia a liberdade religiosa como direito inalienável de cada pessoa.

Com esse discurso, Bento XVI falava a todo o povo católico. Mas, ao mesmo tempo, também aos lefebvristas, aos quais indicava a via mestra para resolver o cisma e regressar à unidade com a Igreja nos pontos por eles contestados: não só a liberdade religiosa, mas também a liturgia, o ecumenismo, a relação com o judaísmo e as outras religiões.

Em todos estes pontos, depois do Concílio Vaticano II os lefebvristas se haviam separado da Igreja católica progressivamente. Em 1975, a Fraternidade Sacerdotal São Pio X – a estrutura na qual se haviam organizado – não obedeceu à ordem de se dissolver e se constituiu em Igreja paralela, com seus próprios bispos, sacerdotes, seminários. Em 1976, o fundador, o arcebispo Marcel Lefebvre, foi suspenso “a divinis”. Em 1988, a excomunhão de Lefebvre e quatro novos bispos ordenados por ele sem a autorização do Papa – por sua vez suspensos “a divinis” – foi o ato culminante de um cisma já em curso há anos.

A suspensão desta excomunhão de fato não resolveu o cisma entre Roma e os lefebvristas, assim como a suspensão das excomunhões entre Roma e o patriarcado de Constantinopla – decidida em 7 de dezembro por Paulo VI e Atenágoras – de fato não marcou o retorno à unidade entre a Igreja católica e as Igrejas ortodoxas do Oriente. Num e noutro caso, a excomunhão suspensa pretendia somente servir como um primeiro passo para recompensar o cisma, que ainda persiste.

Como confirmação disto existe uma nota do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, emitida em 24 de agosto de 1996. Nela se lê que a excomunhão de 1988 dos bispos lefebvristas “constituiu a consumação de uma progressiva situação global de índole cismática” e que “enquanto não houver mudanças que levem ao restabelecimento da necessária ‘communio hierarchica’, todo o movimento lefebvrista deve ser considerado cismático”.

Este era o estado dos fatos sobre os quais interveio a decisão de Bento XVI de suspender a excomunhão dos quatro bispos lefebvristas.

Mas, de tudo isso pouco ou nada se lê ou se entende no decreto emanado pela Santa Sé no dia 24 de janeiro. Na “vulgata” difundida pela imprensa, com este decreto a Igreja de Roma simplesmente acolhia no próprio seio os lefebvristas.

* * *

A notória ressonância de uma entrevista de um dos quatro bispos agraciados, o inglês Richard Williamson, que sustentava teses negacionistas sobre o Holocausto, veio para agravar a questão.

A entrevista foi gravada por uma TV sueca em 1º de novembro de 2008, mas foi transmitida no dia 21 de janeiro, mesmo dia em que no Vaticano foi assinado o decreto de suspensão da excomunhão de Williamson e dos outros três bispos lefebvristas.

Na imprensa de todo o mundo a notícia se converteu na seguinte: o Papa absolve da excomunhão e acolhe na Igreja um bispo negacionista.

A tempestade que se desatou foi tremenda. Do mundo judaico, mas não só, houve incontáveis protestos. No Vaticano, se correu para remediar a situação de várias maneiras, com declarações e artigos publicados no L’Osservatore Romano. A polêmica se atenuou só depois que Bento XVI interveio pessoalmente, com dois esclarecimentos lidos no final da audiência geral da quarta-feira, 28 de janeiro: uma sobre os lefebvristas e sobre o seu dever de “reconhecimento do Magistério e da autoridade do Papa e do Concílio Vaticano II” e outra sobre o Holocausto.

A pergunta natural que surge é a seguinte: tudo isso não poderia ter sido evitado, uma vez tomada a decisão do Papa de suspender a excomunhão dos bispos lefebvristas? Ou o desastre foi fruto de erros e omissões dos homens que deveriam encaminhar as decisões do Papa? Os fatos se inclinam pela segunda hipótese.

O decreto de suspensão da excomunhão tem a assinatura do Cardeal Giovanni Battista Re, Prefeito da Congregação para os Bispos. Outro Cardeal, Darío Castrillón Hoyos, é o presidente da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei que se ocupa, desde a sua constituição, em 1988, com os seguidores de Lefebvre. Tanto um como o outro declararam ter sido tomados de surpresa, com fatos consumados, pela entrevista do bispo Williamson e de não ter nunca sabido de que fora um contumaz negador do Holocausto.

Mas um exame aprofundado do perfil pessoal de Williamson e dos outros três bispos não era acaso o primeiro dever de ofício dos dois cardeais? Que não o tenham feito parece imperdoável. Tal exame não era nem sequer difícil. Williamson nunca escondeu sua aversão ao judaísmo. Defendeu publicamente a autenticidade dos “Protocolos dos Sábios de Sião”. Em 1989, no Canadá, esteve a ponto de ser processado por ter exaltado os livros de um autor negacionista, Ernst Zundel. Depois do 11 de setembro de 2001 aderiu às teses de complô para explicar a queda das Torres Gêmeas. Bastava um clic no Google para encontrar estes antecedentes.

Outra grave falha compete ao Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos. A recomposição do cisma com os lefebvristas faz parte, logicamente, de suas competências, que compreendem também as relações entre a Igreja e o judaísmo. Mas o Cardeal que o preside, Walter Kasper, disse ter sido mantido fora das deliberações, coisa tanto mais surpreendente quando a emissão do decreto de suspensão da excomunhão ocorreu durante a semana anual de oração pela unidade dos cristãos e a poucos dias da jornada mundial de memória do Holocausto.

Há mais. Também se apresenta inteiramente deficiente o lançamento midiático da decisão. A Sala da Imprensa do Vaticano se limitou, no sábado, 24 de janeiro, a distribuir o texto do decreto, apesar de que há alguns dias já existiam claros indícios da mesma e de que sobre ela estava se armando a polêmica provocada pelas declarações negacionistas de Williamson.

Há uma comparação iluminadora. No dia anterior, 23 de janeiro, a mesma Sala de Imprensa havia organizado com grande pompa o lançamento do canal televisivo vaticano no YouTube. E poucos dias depois, 29 de janeiro, teria lançado, sempre com grande envolvimento de pessoas e meios de comunicação, um Congresso Internacional sobre Galileu Galilei programado para final de maio. Em ambos os casos, o objetivo era transmitir aos meios de comunicação o sentido autêntico de uma e outra iniciativa.

Nada parecido foi feito para o decreto referente aos bispos lefebvristas, que, no entanto, contava com todos os elementos para merecer um lançamento adequado. E também os tempos eram os justos. Estava em andamento a semana da oração pela unidade dos cristãos; era iminente a jornada pelo diálogo entre católicos e judeus. O Cardeal Kasper, o responsável máximo da Cúria em ambos os setores, teria sido a pessoa ideal para apresentar o decreto, enquadrá-lo na persistente situação de cisma, indicar a finalidade da suspensão da excomunhão, recapitular os pontos sobre os quais os lefebvristas estavam sendo chamados a reconsiderar suas posições, partindo da aceitação plena do Concílio Vaticano II até a superação do antijudaísmo que defendem. Quanto a Williamson, não teria sido difícil cincunscrever seu caso: mantendo-se firme em suas aberrantes teses negacionistas, ele mesmo se negaria ao gesto de “misericórdia” do Papa.

Bem, se nada disso ocorreu, não foi por culpa da Sala da Imprensa vaticana e de seu Diretor, o jesuíta Federico Lombardi, mas dos diferentes Dicastérios da Cúria das quais recebem as indicações. Dicastérios que se remetem à Secretaria de Estado.

* * *

De Paulo VI em diante, a Secretaria de Estado é o órgão máximo e o motor da máquina curial. Tem acesso direto ao Papa e governa a execução de cada uma de suas decisões. Confia-as aos Dicastérios competentes e coordena o trabalho dos mesmos.

Pois, em toda a situação da suspensão da excomunhão dos bispos lefebvristas o Secretário de Estado, Cardeal Tarcisio Bertone, sempre muito ativo e loquaz, se distinguiu por sua ausência.

Seu primeiro comentário público sobre a questão se deu no dia 28 de janeiro, à margem de um Congresso romano no qual era conferencista. Mas, mais que as palavras, faltaram de sua parte as ações adequadas à importância da questão. Antes, durante e depois da emissão do decreto.

Bento XVI foi deixado praticamente sozinho e a Cúria foi abandonada à desordem.

Já está à vista de todos que o Papa Ratzinger renunciou à reforma da Cúria. Mas se colocava a hipótese de que ele tivesse suprido esta sua decisão confiando a guia dos Dicastérios a um secretário de Estado dinâmico e de pulso, Bertone.

Hoje, também esta hipótese se revela defeituosa. Com Bertone, a Cúria parece mais desordenada que antes, talvez também porque ele nunca tivesse se dedicado inteiramente a resolver os seus problemas. Bertone desenvolve grande parte de sua atividade não dentro dos muros vaticanos, mas fora, num incessante giro de conferências, celebrações e inaugurações. Suas viagens ao exterior são frequentes e cheias de encontros e de discursos como as de João Paulo II em plena saúde: de 15 a 19 de janeiro esteve no México e por estes dias está de viagem pela Espanha. Em consequência, o trabalho que as oficinas da secretaria de Estado dedicam a estas suas atividades externas é trabalho que se subtrai ao do Papa. Ou às vezes é uma inútil duplicação: por exemplo, quando Bertone tem um discurso sobre o mesmo tema e no mesmo auditório ao qual logo depois o Papa falará, com os jornalistas pontualmente à caça das diferenças entre ambos.

A devoção pessoal de Bertone a Bento XVI está fora de qualquer cogitação. O mesmo não acontece com outros responsáveis da Cúria, que continuam tendo campo livre. Pode ser que alguns sejam conscientemente contrários a este Pontificado. Certamente, a maioria simplesmente não o entende, não está à sua altura.

13/02/2009

Brasil - Centenário de Dom Helder: Dor e vitória de um profeta

por Eugênio Mattos Viola
Fonte: ADITAL

"O fim da vida de Dom Helder em Recife foi muito doloroso. Ele continuava dizendo o que pensava e tinha que fazê-lo, mas sabia que suas palavras não eram bem recebidas pelo seu sucessor" (Dom Clemente Isnard, ex-Vice-Presidente da CNBB e monge beneditino).

As palavras de Dom Clemente talvez expliquem em parte o comovente artigo publicado na ADITAL pela teóloga Ivone Gebara (1) sobre a missa celebrada no último dia 7, em Recife, para lembrar o centenário de nascimento de Dom Helder Camara. "(...) Eu estava lá diante da Igreja das Fronteiras onde ele passara grande parte de sua vida, sentada no meio da multidão (...) Havia muita gente, mas senti uma falta grande das comunidades populares, do povão de D. Helder, daqueles que adoravam tocá-lo e receber seu abraço e seu sorriso aberto(...) vi diante de mim o espetáculo de mitras e um báculo, símbolo do poder que agora se impunha como se fosse o representante da ordem divina(...)".

É consenso para os que trabalharam e conviveram com Dom Helder que a escolha do sucessor dele na Arquidiocese de Olinda e Recife foi um grande erro do Papa João Paulo II.

Ainda que grande parte dos frutos da ação pastoral de Dom Helder tenha sido desmantelada pelos que o sucederam à frente da Arquidiocese, ainda que seu silêncio de dor no fim da vida grite em nossos corações, encontro nesse trecho da biografia do "Dom", escrita pelo jornalista Marcos de Castro, um caminho que mantém acesa a chama da Fé: "Os que tentam calar e condenar Dom Helder são os que não conseguem imaginar que, desde a crucificação, desde os primeiros mártires que se seguiram, desde sempre, no cristianismo, a vitória está na derrota aparente. Os que tentam humilhá-lo são os que não conseguem se lembrar da verdade evangélica segundo a qual quem mais humilhado for, mais exaltado será" (Dom Helder - Misticismo e Santidade, Civilização Brasileira, 2002).

No artigo que publiquei no último sábado no Jornal do Brasil (2), tive a oportunidade de colher depoimentos de pessoas que conviveram e trabalharam com Dom Helder e não me resta dúvida de que, além do peregrino da paz e da justiça estar vivo no coração dessas pessoas, seu nome ainda ganhará o merecido reconhecimento que lhe faltou em vida pela alta hierarquia eclesiástica pós Paulo VI. Os santos e profetas dificilmente são compreendidos e aceitos no tempo humano (Cronos). Eles fazem parte do Tempo Espiritual (Kairós).

Quem poderá estimar quantas pessoas, no Brasil e no mundo, estiveram em comunhão, de forma simples e silenciosa, com o "Dom" no último dia 7?

Como foi necessário cortar partes dos depoimentos publicados na matéria do JB, deixo aqui registrada a íntegra desses testemunhos:

"É hora de relembrar essa figura excepcional da Igreja no Brasil, para muitos -e nesse grupo me incluo- a maior figura de sacerdote em nosso país no século XX. Escrevi uma biografia de Dom Helder, lançada em 1978 e reeditada, pela Civilização Brasileira, em 2002. A circunstância me permitiu conviver com ele por alguns dias.

Quero começar lembrando a ação de Dom Helder em nossa cidade do Rio de Janeiro, onde seu trabalho foi intenso, e que teve a parte mais visível na realização do Congresso Eucarístico Internacional, realizado em 1955 no Aterro da Glória, sob uma organização impecável. O Aterro não era o que é hoje, bem gramado, com jardins desenhados por Burle Marx. Várias passarelas de concreto, a presença dominadora do Monumento aos Mortos na II Guerra Mundial e a beleza arquitetônica do Museu de Arte Moderna. O Aterro era mesmo um simples aterro (agora com minúscula), terra jogada na baía, produto do desmonte do Morro de Santo Antônio, que caminhões em viagens incessantes transportaram durante meses do Largo da Carioca até seu destino final.

Sobre a terra nua do Aterro é que se realizou o Congresso Eucarístico, o altar-mor instalado em plano altíssimo, mais ou menos onde está hoje o monumento, milhares e milhares de bancos de madeira para os fiéis diante dele. Terminado o Congresso, que fazer com tanta madeira, tornada inútil ao fim da solenidade litúrgica? Aí é que surgiu o primeiro grande trabalho de Dom Helder voltado para os pobres: a madeira foi utilizada para a construção dos edifícios da Cruzada São Sebastião, no Leblon, erguida no ponto antes conhecido como Praia do Pinto -e os favelados da Praia do Pinto é que foram ocupar os novos edifícios.

A partir daí, Dom Helder, que se mostrara um incomparável homem de ação, voltou-se totalmente para os pobres, no Rio (onde ficaria até 1964), como no seu posto seguinte, na capital pernambucana. Por se voltar para os pobres é que acabou vítima de uma campanha que até dentro da própria Igreja teve gente a insuflá-la. Nenhuma novidade: desde que o mundo é mundo quem trabalha pelos pobres sempre teve contra si os que preferem os braços cruzados, os que preferem deixar tudo como está porque, tudo ficando como está, continuarão no seu bem-bom.

Não vou citar nomes dos que dentro da própria Igreja se voltaram contra Dom Helder. Qualquer documento, qualquer publicação da época os cita exaustivamente. Quero lembrar apenas o seu total isolamento no fim da vida, quando, já arcebispo emérito, viu minuciosamente destruído todo o seu trabalho em Pernambuco voltado para os pobres, os miseráveis, os despossuídos, os "pequenos", como ele mesmo os chamava.

No quartinho humilde onde morava, no fundo da Igrejinha das Fronteiras, no bairro recifense do Dérbi, onde continuou morando até a morte, em 1999 (aos 90 anos), Dom Helder se manteve sempre em rigoroso silêncio. Nunca abriu a boca para pronunciar uma palavra que fosse contra a Igreja local, que não deixou pedra sobre pedra de toda a obra laboriosamente construída por ele.

Foi um silêncio santificante, sem dúvida, um silêncio que evitou a existência de uma polêmica inútil dentro da Igreja, uma vez que não havia como lutar contra a nova linha de trabalho da arquidiocese. Em silêncio ele permaneceu e em silêncio morreu. O "arcebispozinho comunista", como o chamavam os generais da ditadura militar, morreu santamente, sem dúvida". (Marcos de Castro, jornalista, autor da biografia "Dom Helder - Misticismo e Santidade").

"Por intermédio de Dom José Vicente Távora conheci Dom Helder em 1954, ambos Bispos Auxiliares do Rio de Janeiro. Dom Helder era responsável pela organização do Congresso Eucarístico Internacional, a realizar-se no Rio de Janeiro, em julho de 1955. Aceitei secretariar Dom Távora nos contatos com os meios de comunicação - sala ao lado da de Dom Helder, sempre de portas abertas. Só a profunda Fé, a radical confiança na Divina Providência, explicam a energia, a capacidade de trabalho daquela figura franzina, quase doentia, que permitiu o êxito da monumental empreitada.

Eu soube que em 1952, o então Pe. Helder, assistente da Ação Católica Brasileira, com a ajuda desse laicato, idealizara a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, oficializada naquela data pela Santa Sé e aprovada multiplicou-se em todos os continentes.

A força espiritual, moral e até física de Dom Helder era alimentada pela Missa diária, às seis da manhã; meditações de madrugada. Mensalmente, aos domingos pela manhã, pregava mini-retiro para sua equipe, da qual eu já fazia parte.

Dom Helder era não-violento por natureza, incapaz de rancor. Na década de 1960, anos da paranóia anticomunista: "ou se é comunista ou anticomunista", independente, continuou a falar pelos "sem voz e sem vez". Foi presença forte no Concílio Vaticano II ao encaminhar e ver aprovadas na Basílica de São Pedro, propostas arejadas que debatera em grupos de trabalho formais e informais.

A voz de Dom Helder repercutiu em todos os Continentes, sua presença exigida por tantos, no Brasil, quanto no exterior. Sua indicação para o Prêmio Nobel foi sabotada pelo, então, Governo Militar do Brasil. Mas, recebeu outro Prêmio "Júri Popular", de valor financeiro equivalente, outorgado na Europa". (Marina Bandeira trabalhou na Comissão Nacional de Justiça e Paz da CNBB).

"Dom Helder fazia de tudo para atender os pobres que o procuravam no Palácio São Joaquim. Ele e seus auxiliares visitavam com freqüência as favelas. Dava atenção aos alcoólatras e também às suas esposas e filhos, numa espécie de ‘adoção humanitária’. Aos moradores dava até assistência no uso dos aparelhos instalados nos banheiros, os quais eles nunca haviam usado antes". (Adelina Thompson, uma das primeiras mulheres a se tornar Ministra da Eucaristia no Rio).

"Durante o Concílio Vaticano II Dom Helder foi ativo nos corredores. Reuniu um grupo de bispos que compartilhavam as suas idéias de modo paralelo. Eram uns 80 a 100. No dia 16 de novembro de 1965, 40 bispos animados por ele reuniram-se na catacumba S.Domitila e assinaram o ‘Pacto das Catacumbas’. Comprometeram-se a viver pobremente e a dar prioridade aos pobres em toda a sua atuação. Daí nasceu Medellín. Foi por parte dos bispos a renovação do compromisso já assumido e vivido por muitos deles. Foi um apelo dirigido a todos os católicos.

Não se atreveram a matar dom Helder provavelmente por medo de repercussões internacionais. Mataram um jovem sacerdote e castigaram uns 20 seja pela prisão, seja pela expulsão.

Dom Helder era um profundo místico que se levantava todas as noites às duas da madrugada para orar. Toda celebração era um ato místico. Deixou milhares de páginas de orações. Vivia como pobre na sacristia das Fronteiras, sem empregada, abria a porta ele mesmo. Almoçava na lanchonete da esquina com os operários. Não tinha carro. Caminhava, ou tomava o ônibus ou recebia carona. Estava sempre metido nas comunidades pobres da diocese. Era de um otimismo radical. Nunca criticava ninguém, mas apenas o regime. Nunca falava mal de ninguém. Era aberto a todos sem nunca fazer restrições Por isso tinha amigos em muitos países, muitas regiões do Brasil, pessoas de todas as crenças, classes sociais. Tinha um dom de intuição extraordinário que lhe permitia sempre descobrir as pessoas mais capacitadas para ajudá-lo". (Pe. José Comblin trabalhou durante muitos anos junto a Dom Helder).

"Nos dois milênios de história da Igreja, reuniram-se 22 Concílios Ecumênicos, sendo o último convocado pelo bem-aventurado Papa João XXIII nos nossos dias. O Papa Paulo VI, que fez a segunda convocação do Concílio, escreveu que o Vaticano II foi o maior Concílio da história da Igreja.

Todos os bispos do Brasil foram convocados e a maioria compareceu. Entre eles, o Bispo-Auxiliar do Rio de Janeiro, Dom Helder Camara. Dom Helder, figura modesta, pela sua atividade e pela sua aceitação por parte dos outros Bispos - mais de dois mil -, se tornou um dos maiores Bispos do Concílio. Pouco Tempo antes do Concílio, ele havia organizado a CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. É como Secretário-Geral da CNBB que ele foi ao Concílio. Lá, onde havia Cardeais que faziam uso da palavra quase todos os dias, nosso Helder não falou nenhuma vez no plenário. Mas se comunicava com as pessoas mais importantes do Concílio e com os peritos que acompanhavam. Foi indubitavelmente o articulador do episcopado brasileiro. Se este, pelo seu número, exerceu um peso no Concílio, em parte se agradece a Dom Helder. Quando o Cardeal Montini, durante o Concílio foi eleito Papa VI, Dom Helder tinha acesso ao Papa, que era o Presidente do Concílio. Terminado o Concílio, Dom Helder continuou a ser convidado para conferências em Paris e outros lugares da Europa, a ponto de fazer sombra no Vaticano. Dom Helder tinha como característica um profundo amor à pessoa do Papa. Tinha suas idéias, é certo, mas um grande respeito à pessoa do Papa. Creio que sofreu bastante durante o pontificado de João Paulo II, embora este o tenha saudado com grande cordialidade nos encontros que tiveram no Brasil.

O fim da vida de Dom Helder em Recife é que foi muito doloroso. Ele continuava dizendo o que pensava e tinha que fazê-lo, mas sabia que suas palavras não eram bem recebidas pelo seu sucessor". (Dom Clemente Isnard, monge beneditino, ex-vice-Presidente da CNBB e responsável pela aplicação da Reforma Litúrgica no Brasil).

"Muito se tem falado e escrito sobre ele, principalmente sobre sua coragem diante de autoridades, denunciando injustiças, atribuindo-lhe sempre uma vocação política, ocultando o seu lado místico, que era o mais importante. O testemunho disso está nos seus escritos, nas suas meditações, todos elaborados em suas vigílias de madrugada que ele salvaguardava diariamente.

Sua personalidade de muitas facetas se revelava na multiplicidade de suas atividades.

Para ele tudo era graça recebida e agradecia a Deus o fato de tê-lo chamado para seu serviço servindo ao próximo e aos irmãos. Para ele, ser padre era servir, era doar-se; o padre não se pertence, não tem o direito de ser egoísta É claro que, antes de tudo, servindo a Deus; vivia, como ele dizia "mergulhado em Deus".

Conheci Dom Helder no fim da década de 40, quando trabalhava na Ação Católica, da qual ele era Assistente Nacional. Vi de perto como ele se empenhou na fundação da Conferência dos Bispos e logo depois no Congresso Eucarístico Internacional, cujos preparativos e organização lhe foram entregues por Dom Jaime Camara. Foi extraordinária sua capacidade de trabalho, de organização.
Foi nessa ocasião que o Cardeal Gerlier, de Lyon, antes de partir, teve um encontro fraterno com Dom Helder onde lhe sugeriu que pusesse todo esse talento organizador a serviço dos pobres. Estava chocado com a presença das favelas numa das cidades mais belas, o que considerava um insulto ao Criador. Foi a partir daí que houve uma guinada na vida de Dom Helder e ele começou a dedicar sua vida inteiramente aos pobres. Fundou a Cruzada São Sebastião com a finalidade de tentar urbanizar, humanizar e cristianizar as favelas do Rio de Janeiro." (Maria Luiza Jardim de Amarante colaborou no projeto da Cruzada São Sebastião).

"Dom Helder Camara conseguiu ser um bispo paradigmático, referência inevitável quando se falava (e se fala) de Igreja comprometida, de solidariedade com todas as grandes causas do povo dos pobres, causas do Reino. Conseguiu ser venerado e amado mundialmente, mesmo sendo também odiado e perseguido pelas ditaduras do Brasil, da Nossa América, do mundo de Deus.

Nascido para evangelizar, suas palavras, com seus gestos exultantes, com suas iniciativas e seus sonhos, convocavam e convocam para a grande campanha mundial da justiça e da paz. Conseguiu ser referência máxima quando se fala dessa Outra Igreja Possível, desse Outro Mundo Possível, necessário, urgente. Sem violência sempre, esperançado e esperançador sempre. Toda sua vida tem sido um despertar a madrugada, nessas noites de contemplação e de poesia. Seu gesto de braços abertos, alongando sua estatura pequena, fica convocando à aventura da compaixão fraterna e da profecia permanentemente em ação". (Dom Pedro Casaldáliga, Bispo Emérito de São Félix do Araguaia).

Notas:

(1) http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=37255
(2) O autor publicou em ADITAL: ‘O deserto fértil de Dom Helder’ - http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=36821

Dom Sérgio da Rocha

A força da esperança

A felicidade de uma pessoa depende muito do seu modo de viver o passado, o presente e o futuro. No âmbito da língua portuguesa, saber conjugar corretamente os tempos verbais já não é tarefa fácil para muitos, especialmente, quando verbos complicados estão em questão.

Saber conjugar, de modo feliz, o passado, o presente e o futuro, na própria vida, torna-se tarefa cada vez mais difícil, embora irrenunciável, especialmente, quando estamos diante de situações complicadas ou de ações difíceis de serem definidas corretamente.

O primeiro desafio é aprender a olhar o passado de modo justo. A atitude de simplesmente negar problemas ocorridos, situações traumáticas, na própria história pessoal ou na história familiar, não ajuda efetivamente a superá-los. Viver presos ao passado, ruminando situações tristes e so- fridas, impede de caminhar rumo à superação e a vida nova.

Ao invés de negar ou sobrevalorizar o passado é preciso olhar com serenidade, reconhecendo com gratidão as alegrias e os valores vividos e, ao mesmo tempo, assumindo com humildade as limitações e as falhas, sem a elas se prender, mas com elas procurando aprender. Aprendemos com a história.

Aprendemos com a própria história pessoal. É certo que o passado condiciona, influencia o presente e o futuro. Diversos pensadores nos campos da psicologia, da filosofia, das ciências sociais, enfatizaram a força do passado, seja na vida pessoal ou na social. Contudo, não se pode cair no determinismo ou numa postura fatalista, pois o passado não é o único fator que conta na vida e na história.

É preciso aprender a conjugar, com esperança, o futuro. É preciso resgatar a força da esperança e do amanhã na vida cotidiana e na história da humanidade; refazer a experiência da força transformadora da esperança. A esperança nos anima a caminhar, ultrapassando situações limites, rumo à vida nova e a nova sociedade.

Diversas correntes de pensamento têm ressaltado o valor do futuro e da esperança, como motor da vida e da história. O ser humano traz consigo a capacidade de superar o passado, de transcender o aqui e agora, olhando prá frente, recomeçando sempre.

As experiências passadas podem ser importantes, porém, o olhar para o futuro com esperança é fator decisivo na vida. A abertura ao amanhã, a potencialidade para crescer e se desenvolver sempre mais, caracterizam a natureza da pessoa humana orientada à plenitude de vida.

Entretanto, o duplo olhar, para o passado e o futuro, se funde e se atualiza na vivência do presente. Viver intensamente o presente é preciso, porém, sem perder-se no instante, na fruição desenfreada do aqui e agora, imposta pelo ritmo frenético da vida atual em sociedade.

Absolutizar o presente é equívoco que tende a levar a uma existência superficial, que ignora o passado e desdenha o futuro. Viver o passado com serenidade e o futuro com a esperança que vêm de Deus. A esperança em Deus, a esperança fundada em Deus, não decepciona jamais.

A importância da esperança fundada na fé é tão grande que mereceu ser tema de uma encíclica de Bento XVI, a Spes Salvi. Todo ser humano precisa de esperança.

O cristão encontra sua esperança alicerçada na vitória de Cristo, na força do Ressuscitado; por isso, acredita no amanhã, acolhendo-o como dom de Deus e oportunidade de renovação e crescimento. Com a luz da fé, é possível não apenas sonhar com o nascer do sol em plena noite, mas antecipar o próprio amanhecer.

Fonte: Arquidiocese de Teresina

Dom Demétrio Valentini

Brasil - Reforma Tributária e Seguridade Social


A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) acaba de alertar, novamente, para as conseqüências negativas que a Reforma Tributária traria para a Seguridade Social, se o projeto em tramitação no Congresso for aprovado tal como é proposto pela PEC 233-2008.

Esta insistência é sintomática. Quando se trata se impostos, o povo reage, se a cidadania está acordada. Muitos episódios decisivos da história nasceram da reação contra a cobrança exagerada de impostos.

Assim foi entre nós, por exemplo, na Inconfidência Mineira. O motivo principal desta revolta foi a chamada "derrama", a cobrança atrasada de impostos exigida pela coroa portuguesa.

Estranha ver como agora a opinião pública pouco enfoca a reforma tributária. Uma das razões vem do fato de que o povo paga sem saber, porque o imposto está embutido no preço das mercadorias. Desta maneira, todos pagam, sem reclamar.

Mas agora nos chega um sinal de alerta, que não podemos ignorar. Junto com as boas intenções de uma reforma tributária que de fato se faz necessária para simplificar o sistema de arrecadação, desonerar a folha salarial, evitar a guerra fiscal entre os Estados, precisamos nos dar conta de uma malícia muito sutil, mas que terá efeitos muito negativos para muitos brasileiros.

Aonde mora o perigo?

O problema é que, se aprovada esta proposta de reforma tributária, não estará mais garantida a destinação exclusiva de recursos necessários para todo o sistema de Seguridade Social, tal como estabeleceu a Constituição de 1988. Com as mudanças agora propostas, fica desmontado o esquema de destinação constitucional de recursos para o Sistema Único de Saúde (SUS), para a Previdência Social, Assistência Social e Seguro Desemprego.

Isto é, todo o leque da Seguridade Social ficará inseguro, pois seus recursos não terão mais a fonte segura de sua arrecadação, e não haverá mais a destinação exclusiva para fins sociais, tal como preceitua a Constituição Federal no seu Artigo 195.

Aí está a questão. Os recursos para a Seguridade Social não seriam mais canalizados compulsoriamente por determinação constitucional, mas precisariam ser votados cada ano, no contexto da aprovação do orçamento. E aí começa a insegurança. Num panorama de permanente escassez de recursos, quem garante que o governo, em cada ano, vai fazer o que fez a constituição de 1988, que não só estabeleceu os direitos sociais, mas garantiu a fonte de recursos para que fossem realmente efetivados.

Em outras palavras, a proposta atual de reforma tributária implicaria um sério retrocesso na concepção social do Estado Brasileiro. A Constituição de 1988 foi clara e enfática, ao estabelecer para os direitos sociais básicos a vinculação: "direito do povo e dever do Estado". Agora, a implementação dos direitos sociais, expressos pelo Sistema de Seguridade Social, ficaria pendente da destinação orçamentária anual, sem a garantia prévia da suficiência dos recursos. Desta maneira, o "dever do Estado" fica condicionado à maneira como vai se repartir o bolo dos recursos. E assim o Estado, com razões facilmente justificadas, "ficará devendo" aos pobres, enquanto pagará em dia os credores da dívida!

E aqui daria para ampliar o debate em torno da reforma tributária, enfocando também outros aspectos. O principal deles é a ausência de objetivos de justiça social no conjunto dos dispositivos do projeto de reforma do sistema tributário brasileiro. Ele deveria ser um instrumento indutor de maior justiça social, estabelecendo tributos maiores para algumas situações, como o imposto sobre heranças, sobre grandes fortunas, e sobre grandes propriedades de terra.

Outro ponto que precisa ser trazido às claras é o peso da dívida interna brasileira. Em 2008 ela corroeu nada menos do que 30,57% do orçamento. Para pagar esta dívida, há tempo o governo vem pegando recursos da Seguridade Social, através da aprovação da DRU, a "Desvinculação dos Recursos da União". Se agora, com todas as garantias constitucionais, já se bota a mão nos recursos da Seguridade Social para pagar a dívida, que dirá depois que a destinação exclusiva for supressa.

Este o alerta, que merece a atenção de todos.

Fonte: ADITAL

10/02/2009

Pe. Manfredo Araújo de Oliveira

Neste mês por iniciativa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e com a participação de todas as dioceses de nosso Estado está ocorrendo um seminário que deverá discutir as questões básicas do semi-árido no Ceará que tem 86,8% de sua área nele inserida. No passado foram realizados três seminários sobre "O homem e a Seca no Nordeste". Já a formulação do novo seminário manifesta uma nova compreensão das questões que se gestou tanto em nível de sociedade como em nível de igreja: a questão é mais ampla e mais profunda do que apenas o problema da seca e por esta razão uma ação pertinente em relação a esta problemática exige uma tomada de consciência que possa dar conta do novo patamar de compreensão. Certamente a questão da seca e de modo especial o problema da água continuam centrais já que a água é absolutamente fundamental para a qualidade da vida humana.

O Instituto de Estudos e Pesquisas para o Desenvolvimento do Estado do Ceará (INESP) publicou no ano passado um estudo da mais alta importância: "Cenário atual dos recursos hídricos do Ceará", o produto de um grande esforço coletivo de 98 instituições / entidades que foram convidadas a participar deste grande processo reflexivo sobre questões de fundamental relevância para a vida de nosso povo. A primeira afirmação é de enorme gravidade: no Ceará a distribuição deste bem que é tão essencial à vida é muito desigual o que já se mostra no fato de que dos 8.185.286 habitantes do Ceará cerca de três milhões não têm acesso à água tratada e mais de cinco milhões não têm ao saneamento o que certamente tem muito a ver com muitas das mortes e enfermidades que encontramos entre nós. O mais grave neste contexto é a inexistência de políticas públicas capazes de assegurar mudanças desta situação de modo especial no que se refere ao atendimento das populações rurais, sobretudo, as difusas no semi-árido.

Em regiões semi-áridas com densidade populacional como a nossa os recursos hídricos constituem uma questão decisiva para o seu desenvolvimento. Mesmo com a garantia de água suficiente para o consumo humano e animal e com grande irrigação, o perigo da seca não é eliminado. Além disto não existe uma política agrícola que garanta segurança mínima no que diz respeito a recursos hídricos ao setor produtivo da agricultura familiar. Por outro lado, toda a oferta de água em nosso estado é concentrada nos grandes e médios perímetros de irrigação e aqui a infra-estrutura foi toda ela construída com recursos públicos. O quadro se torna mais sombrio quando se leva em consideração a depredação sistemática do meio-ambiente através da expansão imobiliária sem controle, do aterramento de lagoas e da destruição de dunas e áreas de preservação ambiental o que revela o descaso completo da questão ecológica.

A grande discussão a respeito de água e desenvolvimento manifesta com clareza, segundo o documento, que a água não é vista como um instrumento de partilha e de democratização de oportunidades, portanto, de justiça social, o que conduz a uma dicotomia que por sua vez revela a natureza do modelo de desenvolvimento que se implanta entre nós: a dicotomia entre a utilização da "água para o desenvolvimento" e sua utilização para "a melhoria das condições de vida" da população. Uma outra questão central decorrente deste modelo é a questão das transferências de bacia: a água que vem do interior para abastecer a região metropolitana de Fortaleza e os complexos industrial e turístico normalmente não beneficia as bacias doadoras. Ora. a questão de fundo destes debates é que a água é um direito humano uma vez que intimamente vinculado ao direito humano elementar que é o direito à vida. Assim, a questão central do semi-árido é a luta pela efetivação deste direito.

Fonte: ADITAL

09/02/2009

Dom da Paz

por Fonseca Neto professor do Departamento de Geografia e História da Universidade Federal do Piauí. Fonte: CCHL-UFPI


Li nestes dias alguém chamando assim a Helder Pessoa Câmara, este padre dos pobres, bispo da esperança. E como o centenário de seu nascimento tem despertado em muitos a lembrança desse caminheiro fraterno.

Os limites espaço-temporais de sua vida comum são a Fortaleza cearense de fevereiro de 1909 e a Olinda recifense de agosto de 1999. Em 90 e mais dez, até 2009, são 100 anos de luz intensa sobre o juízo da humanidade.

Neste 7 de fevereiro, há um turbilhão de falas evocativas de sua vida e exemplo, nas igrejas, na rede mundial, nos círculos ativos da vivência cristã das ruas descalças.

O que mais necessário lembrar-se dele nesta hora?

Ainda há humanos caindo aos pedaços pelos esgotos a céu aberto; esgotos espraiando misérias pelas ruas dos desesperados; ruas bloqueadas ao livre caminhar da Liberdade; o caminhar do mundo ameaçado ante a porteira do poder-fausto de poucos; a porteira do latifúndio criando a fome, nutrindo o capital da morte.

Poder que esse Dom da Paz, maior entre os Nobel aclamados, assustou, somente por sair por aí andando e pregando que aquele jovem galileu é um amigo dos pobres. Poder que tentou calar-lhe a voz, subtrair-lhe o chão sem chão de terra dos mocambos por onde trilhou junto aos oprimidos.

Ainda que fora dos cânones, padre Helder é um são Helder no coração dos sofredores. No campo celeste onde habitam outros que se fizeram santos do povo pela opção dedicada aos que sofrem sob o jugo das opressões, está junto a mártires, tal Sebastião, caminheiros do bem, tal Francisco, pais da caridade, tal Vicente de Paulo.

O Brasil do padre Helder, ordenado em 1931, politicamente, é aquele do integralismo contra o getulismo estadonovista, da redemocracia de 45, da ditadura de 64, da nova redemocracia de 85. Em todos esses tempos, seu partido é a igreja, que a quer e sustenta como norte do povo, a comunhão fraternal como ato libertador.

A Roma vaticana de João XXIII, conciliar, flagra Helder, já um bispo, imerso nas favelas cariocas, e o nomeia para a Sé arquiepiscopal ludovicense do Maranhão; toma posse, todavia, em Olinda-Recife, em 12 de abril de 1964 –seu pastoreio pernambucano, assim, é inaugurado sob as labaredas vivas da ditadura imposta ao país há apenas doze dias.

Interessante essa conjunção de destinos, disjuntos: um padre libertário assumindo o sólio secular olidense, na hora extrema em que o chão da pátria, em brasa, movia-se para dobrar, em sua história, uma esquina esperançosa de justiça e paz. E aquele padreco-bispo, logo em Pernambuco, solo fecundado com o sangue de frei Amor Divino. Pernambuco de gente valente, praieira e sertã, em 64 tão vítima dos golpistas de março, porque terra de desafinadores do coro dos contentes (TN): M. Arraes, F. Julião, P. Freire, J. Castro, A. Suassuna.

Parece que ali pousara padre Helder naquele instante como que para ecoar a voz e temperar os signos da militância desses líderes e de milhões de deserdados comuns na hora em que o ferrão das oligarquias lhes calava covardemente a fala. Helder não ergueu este papel, em si e para si, mas seria desde então um dos maiores obstáculos a que a Ditadura obscurantista de 64 consumasse suas iniqüidades contra as liberdades; aniquilasse os amigos dos pobres.

Que armas usou abrindo caminhos à liberdade? “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei a vocês”: a palavra do evangelho cristão semeada entre o povo, germinando em ação real e frutificando além da retórica pregada do ambão.

O regime militar e as oligarquias reiteradas, daqui e dalhures, estremeciam ante o exemplo dele, pequeno-grande padre de fala mansa, naquele instante em que as batinas pretas das catedrais de ouro ficavam brancas sob a luz, mãe da vida.

Aliás, canhões e bombas traduzem o poder dos fracos. Em Teresina, na posse de Falcão, Helder deixou vazia, com graça, a mão oficial que se levantara a levar sua maleta; e foi, bispo vermelho, dizer missa na Vermelha, na vermelhidão matutina.