13/02/2009

Brasil - Centenário de Dom Helder: Dor e vitória de um profeta

por Eugênio Mattos Viola
Fonte: ADITAL

"O fim da vida de Dom Helder em Recife foi muito doloroso. Ele continuava dizendo o que pensava e tinha que fazê-lo, mas sabia que suas palavras não eram bem recebidas pelo seu sucessor" (Dom Clemente Isnard, ex-Vice-Presidente da CNBB e monge beneditino).

As palavras de Dom Clemente talvez expliquem em parte o comovente artigo publicado na ADITAL pela teóloga Ivone Gebara (1) sobre a missa celebrada no último dia 7, em Recife, para lembrar o centenário de nascimento de Dom Helder Camara. "(...) Eu estava lá diante da Igreja das Fronteiras onde ele passara grande parte de sua vida, sentada no meio da multidão (...) Havia muita gente, mas senti uma falta grande das comunidades populares, do povão de D. Helder, daqueles que adoravam tocá-lo e receber seu abraço e seu sorriso aberto(...) vi diante de mim o espetáculo de mitras e um báculo, símbolo do poder que agora se impunha como se fosse o representante da ordem divina(...)".

É consenso para os que trabalharam e conviveram com Dom Helder que a escolha do sucessor dele na Arquidiocese de Olinda e Recife foi um grande erro do Papa João Paulo II.

Ainda que grande parte dos frutos da ação pastoral de Dom Helder tenha sido desmantelada pelos que o sucederam à frente da Arquidiocese, ainda que seu silêncio de dor no fim da vida grite em nossos corações, encontro nesse trecho da biografia do "Dom", escrita pelo jornalista Marcos de Castro, um caminho que mantém acesa a chama da Fé: "Os que tentam calar e condenar Dom Helder são os que não conseguem imaginar que, desde a crucificação, desde os primeiros mártires que se seguiram, desde sempre, no cristianismo, a vitória está na derrota aparente. Os que tentam humilhá-lo são os que não conseguem se lembrar da verdade evangélica segundo a qual quem mais humilhado for, mais exaltado será" (Dom Helder - Misticismo e Santidade, Civilização Brasileira, 2002).

No artigo que publiquei no último sábado no Jornal do Brasil (2), tive a oportunidade de colher depoimentos de pessoas que conviveram e trabalharam com Dom Helder e não me resta dúvida de que, além do peregrino da paz e da justiça estar vivo no coração dessas pessoas, seu nome ainda ganhará o merecido reconhecimento que lhe faltou em vida pela alta hierarquia eclesiástica pós Paulo VI. Os santos e profetas dificilmente são compreendidos e aceitos no tempo humano (Cronos). Eles fazem parte do Tempo Espiritual (Kairós).

Quem poderá estimar quantas pessoas, no Brasil e no mundo, estiveram em comunhão, de forma simples e silenciosa, com o "Dom" no último dia 7?

Como foi necessário cortar partes dos depoimentos publicados na matéria do JB, deixo aqui registrada a íntegra desses testemunhos:

"É hora de relembrar essa figura excepcional da Igreja no Brasil, para muitos -e nesse grupo me incluo- a maior figura de sacerdote em nosso país no século XX. Escrevi uma biografia de Dom Helder, lançada em 1978 e reeditada, pela Civilização Brasileira, em 2002. A circunstância me permitiu conviver com ele por alguns dias.

Quero começar lembrando a ação de Dom Helder em nossa cidade do Rio de Janeiro, onde seu trabalho foi intenso, e que teve a parte mais visível na realização do Congresso Eucarístico Internacional, realizado em 1955 no Aterro da Glória, sob uma organização impecável. O Aterro não era o que é hoje, bem gramado, com jardins desenhados por Burle Marx. Várias passarelas de concreto, a presença dominadora do Monumento aos Mortos na II Guerra Mundial e a beleza arquitetônica do Museu de Arte Moderna. O Aterro era mesmo um simples aterro (agora com minúscula), terra jogada na baía, produto do desmonte do Morro de Santo Antônio, que caminhões em viagens incessantes transportaram durante meses do Largo da Carioca até seu destino final.

Sobre a terra nua do Aterro é que se realizou o Congresso Eucarístico, o altar-mor instalado em plano altíssimo, mais ou menos onde está hoje o monumento, milhares e milhares de bancos de madeira para os fiéis diante dele. Terminado o Congresso, que fazer com tanta madeira, tornada inútil ao fim da solenidade litúrgica? Aí é que surgiu o primeiro grande trabalho de Dom Helder voltado para os pobres: a madeira foi utilizada para a construção dos edifícios da Cruzada São Sebastião, no Leblon, erguida no ponto antes conhecido como Praia do Pinto -e os favelados da Praia do Pinto é que foram ocupar os novos edifícios.

A partir daí, Dom Helder, que se mostrara um incomparável homem de ação, voltou-se totalmente para os pobres, no Rio (onde ficaria até 1964), como no seu posto seguinte, na capital pernambucana. Por se voltar para os pobres é que acabou vítima de uma campanha que até dentro da própria Igreja teve gente a insuflá-la. Nenhuma novidade: desde que o mundo é mundo quem trabalha pelos pobres sempre teve contra si os que preferem os braços cruzados, os que preferem deixar tudo como está porque, tudo ficando como está, continuarão no seu bem-bom.

Não vou citar nomes dos que dentro da própria Igreja se voltaram contra Dom Helder. Qualquer documento, qualquer publicação da época os cita exaustivamente. Quero lembrar apenas o seu total isolamento no fim da vida, quando, já arcebispo emérito, viu minuciosamente destruído todo o seu trabalho em Pernambuco voltado para os pobres, os miseráveis, os despossuídos, os "pequenos", como ele mesmo os chamava.

No quartinho humilde onde morava, no fundo da Igrejinha das Fronteiras, no bairro recifense do Dérbi, onde continuou morando até a morte, em 1999 (aos 90 anos), Dom Helder se manteve sempre em rigoroso silêncio. Nunca abriu a boca para pronunciar uma palavra que fosse contra a Igreja local, que não deixou pedra sobre pedra de toda a obra laboriosamente construída por ele.

Foi um silêncio santificante, sem dúvida, um silêncio que evitou a existência de uma polêmica inútil dentro da Igreja, uma vez que não havia como lutar contra a nova linha de trabalho da arquidiocese. Em silêncio ele permaneceu e em silêncio morreu. O "arcebispozinho comunista", como o chamavam os generais da ditadura militar, morreu santamente, sem dúvida". (Marcos de Castro, jornalista, autor da biografia "Dom Helder - Misticismo e Santidade").

"Por intermédio de Dom José Vicente Távora conheci Dom Helder em 1954, ambos Bispos Auxiliares do Rio de Janeiro. Dom Helder era responsável pela organização do Congresso Eucarístico Internacional, a realizar-se no Rio de Janeiro, em julho de 1955. Aceitei secretariar Dom Távora nos contatos com os meios de comunicação - sala ao lado da de Dom Helder, sempre de portas abertas. Só a profunda Fé, a radical confiança na Divina Providência, explicam a energia, a capacidade de trabalho daquela figura franzina, quase doentia, que permitiu o êxito da monumental empreitada.

Eu soube que em 1952, o então Pe. Helder, assistente da Ação Católica Brasileira, com a ajuda desse laicato, idealizara a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, oficializada naquela data pela Santa Sé e aprovada multiplicou-se em todos os continentes.

A força espiritual, moral e até física de Dom Helder era alimentada pela Missa diária, às seis da manhã; meditações de madrugada. Mensalmente, aos domingos pela manhã, pregava mini-retiro para sua equipe, da qual eu já fazia parte.

Dom Helder era não-violento por natureza, incapaz de rancor. Na década de 1960, anos da paranóia anticomunista: "ou se é comunista ou anticomunista", independente, continuou a falar pelos "sem voz e sem vez". Foi presença forte no Concílio Vaticano II ao encaminhar e ver aprovadas na Basílica de São Pedro, propostas arejadas que debatera em grupos de trabalho formais e informais.

A voz de Dom Helder repercutiu em todos os Continentes, sua presença exigida por tantos, no Brasil, quanto no exterior. Sua indicação para o Prêmio Nobel foi sabotada pelo, então, Governo Militar do Brasil. Mas, recebeu outro Prêmio "Júri Popular", de valor financeiro equivalente, outorgado na Europa". (Marina Bandeira trabalhou na Comissão Nacional de Justiça e Paz da CNBB).

"Dom Helder fazia de tudo para atender os pobres que o procuravam no Palácio São Joaquim. Ele e seus auxiliares visitavam com freqüência as favelas. Dava atenção aos alcoólatras e também às suas esposas e filhos, numa espécie de ‘adoção humanitária’. Aos moradores dava até assistência no uso dos aparelhos instalados nos banheiros, os quais eles nunca haviam usado antes". (Adelina Thompson, uma das primeiras mulheres a se tornar Ministra da Eucaristia no Rio).

"Durante o Concílio Vaticano II Dom Helder foi ativo nos corredores. Reuniu um grupo de bispos que compartilhavam as suas idéias de modo paralelo. Eram uns 80 a 100. No dia 16 de novembro de 1965, 40 bispos animados por ele reuniram-se na catacumba S.Domitila e assinaram o ‘Pacto das Catacumbas’. Comprometeram-se a viver pobremente e a dar prioridade aos pobres em toda a sua atuação. Daí nasceu Medellín. Foi por parte dos bispos a renovação do compromisso já assumido e vivido por muitos deles. Foi um apelo dirigido a todos os católicos.

Não se atreveram a matar dom Helder provavelmente por medo de repercussões internacionais. Mataram um jovem sacerdote e castigaram uns 20 seja pela prisão, seja pela expulsão.

Dom Helder era um profundo místico que se levantava todas as noites às duas da madrugada para orar. Toda celebração era um ato místico. Deixou milhares de páginas de orações. Vivia como pobre na sacristia das Fronteiras, sem empregada, abria a porta ele mesmo. Almoçava na lanchonete da esquina com os operários. Não tinha carro. Caminhava, ou tomava o ônibus ou recebia carona. Estava sempre metido nas comunidades pobres da diocese. Era de um otimismo radical. Nunca criticava ninguém, mas apenas o regime. Nunca falava mal de ninguém. Era aberto a todos sem nunca fazer restrições Por isso tinha amigos em muitos países, muitas regiões do Brasil, pessoas de todas as crenças, classes sociais. Tinha um dom de intuição extraordinário que lhe permitia sempre descobrir as pessoas mais capacitadas para ajudá-lo". (Pe. José Comblin trabalhou durante muitos anos junto a Dom Helder).

"Nos dois milênios de história da Igreja, reuniram-se 22 Concílios Ecumênicos, sendo o último convocado pelo bem-aventurado Papa João XXIII nos nossos dias. O Papa Paulo VI, que fez a segunda convocação do Concílio, escreveu que o Vaticano II foi o maior Concílio da história da Igreja.

Todos os bispos do Brasil foram convocados e a maioria compareceu. Entre eles, o Bispo-Auxiliar do Rio de Janeiro, Dom Helder Camara. Dom Helder, figura modesta, pela sua atividade e pela sua aceitação por parte dos outros Bispos - mais de dois mil -, se tornou um dos maiores Bispos do Concílio. Pouco Tempo antes do Concílio, ele havia organizado a CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. É como Secretário-Geral da CNBB que ele foi ao Concílio. Lá, onde havia Cardeais que faziam uso da palavra quase todos os dias, nosso Helder não falou nenhuma vez no plenário. Mas se comunicava com as pessoas mais importantes do Concílio e com os peritos que acompanhavam. Foi indubitavelmente o articulador do episcopado brasileiro. Se este, pelo seu número, exerceu um peso no Concílio, em parte se agradece a Dom Helder. Quando o Cardeal Montini, durante o Concílio foi eleito Papa VI, Dom Helder tinha acesso ao Papa, que era o Presidente do Concílio. Terminado o Concílio, Dom Helder continuou a ser convidado para conferências em Paris e outros lugares da Europa, a ponto de fazer sombra no Vaticano. Dom Helder tinha como característica um profundo amor à pessoa do Papa. Tinha suas idéias, é certo, mas um grande respeito à pessoa do Papa. Creio que sofreu bastante durante o pontificado de João Paulo II, embora este o tenha saudado com grande cordialidade nos encontros que tiveram no Brasil.

O fim da vida de Dom Helder em Recife é que foi muito doloroso. Ele continuava dizendo o que pensava e tinha que fazê-lo, mas sabia que suas palavras não eram bem recebidas pelo seu sucessor". (Dom Clemente Isnard, monge beneditino, ex-vice-Presidente da CNBB e responsável pela aplicação da Reforma Litúrgica no Brasil).

"Muito se tem falado e escrito sobre ele, principalmente sobre sua coragem diante de autoridades, denunciando injustiças, atribuindo-lhe sempre uma vocação política, ocultando o seu lado místico, que era o mais importante. O testemunho disso está nos seus escritos, nas suas meditações, todos elaborados em suas vigílias de madrugada que ele salvaguardava diariamente.

Sua personalidade de muitas facetas se revelava na multiplicidade de suas atividades.

Para ele tudo era graça recebida e agradecia a Deus o fato de tê-lo chamado para seu serviço servindo ao próximo e aos irmãos. Para ele, ser padre era servir, era doar-se; o padre não se pertence, não tem o direito de ser egoísta É claro que, antes de tudo, servindo a Deus; vivia, como ele dizia "mergulhado em Deus".

Conheci Dom Helder no fim da década de 40, quando trabalhava na Ação Católica, da qual ele era Assistente Nacional. Vi de perto como ele se empenhou na fundação da Conferência dos Bispos e logo depois no Congresso Eucarístico Internacional, cujos preparativos e organização lhe foram entregues por Dom Jaime Camara. Foi extraordinária sua capacidade de trabalho, de organização.
Foi nessa ocasião que o Cardeal Gerlier, de Lyon, antes de partir, teve um encontro fraterno com Dom Helder onde lhe sugeriu que pusesse todo esse talento organizador a serviço dos pobres. Estava chocado com a presença das favelas numa das cidades mais belas, o que considerava um insulto ao Criador. Foi a partir daí que houve uma guinada na vida de Dom Helder e ele começou a dedicar sua vida inteiramente aos pobres. Fundou a Cruzada São Sebastião com a finalidade de tentar urbanizar, humanizar e cristianizar as favelas do Rio de Janeiro." (Maria Luiza Jardim de Amarante colaborou no projeto da Cruzada São Sebastião).

"Dom Helder Camara conseguiu ser um bispo paradigmático, referência inevitável quando se falava (e se fala) de Igreja comprometida, de solidariedade com todas as grandes causas do povo dos pobres, causas do Reino. Conseguiu ser venerado e amado mundialmente, mesmo sendo também odiado e perseguido pelas ditaduras do Brasil, da Nossa América, do mundo de Deus.

Nascido para evangelizar, suas palavras, com seus gestos exultantes, com suas iniciativas e seus sonhos, convocavam e convocam para a grande campanha mundial da justiça e da paz. Conseguiu ser referência máxima quando se fala dessa Outra Igreja Possível, desse Outro Mundo Possível, necessário, urgente. Sem violência sempre, esperançado e esperançador sempre. Toda sua vida tem sido um despertar a madrugada, nessas noites de contemplação e de poesia. Seu gesto de braços abertos, alongando sua estatura pequena, fica convocando à aventura da compaixão fraterna e da profecia permanentemente em ação". (Dom Pedro Casaldáliga, Bispo Emérito de São Félix do Araguaia).

Notas:

(1) http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=37255
(2) O autor publicou em ADITAL: ‘O deserto fértil de Dom Helder’ - http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=36821