Li nestes dias alguém chamando assim a Helder Pessoa Câmara, este padre dos pobres, bispo da esperança. E como o centenário de seu nascimento tem despertado em muitos a lembrança desse caminheiro fraterno.
Os limites espaço-temporais de sua vida comum são a Fortaleza cearense de fevereiro de 1909 e a Olinda recifense de agosto de 1999. Em 90 e mais dez, até 2009, são 100 anos de luz intensa sobre o juízo da humanidade.
Neste 7 de fevereiro, há um turbilhão de falas evocativas de sua vida e exemplo, nas igrejas, na rede mundial, nos círculos ativos da vivência cristã das ruas descalças.
O que mais necessário lembrar-se dele nesta hora?
Ainda há humanos caindo aos pedaços pelos esgotos a céu aberto; esgotos espraiando misérias pelas ruas dos desesperados; ruas bloqueadas ao livre caminhar da Liberdade; o caminhar do mundo ameaçado ante a porteira do poder-fausto de poucos; a porteira do latifúndio criando a fome, nutrindo o capital da morte.
Poder que esse Dom da Paz, maior entre os Nobel aclamados, assustou, somente por sair por aí andando e pregando que aquele jovem galileu é um amigo dos pobres. Poder que tentou calar-lhe a voz, subtrair-lhe o chão sem chão de terra dos mocambos por onde trilhou junto aos oprimidos.
Ainda que fora dos cânones, padre Helder é um são Helder no coração dos sofredores. No campo celeste onde habitam outros que se fizeram santos do povo pela opção dedicada aos que sofrem sob o jugo das opressões, está junto a mártires, tal Sebastião, caminheiros do bem, tal Francisco, pais da caridade, tal Vicente de Paulo.
O Brasil do padre Helder, ordenado em 1931, politicamente, é aquele do integralismo contra o getulismo estadonovista, da redemocracia de 45, da ditadura de 64, da nova redemocracia de 85. Em todos esses tempos, seu partido é a igreja, que a quer e sustenta como norte do povo, a comunhão fraternal como ato libertador.
A Roma vaticana de João XXIII, conciliar, flagra Helder, já um bispo, imerso nas favelas cariocas, e o nomeia para a Sé arquiepiscopal ludovicense do Maranhão; toma posse, todavia, em Olinda-Recife, em 12 de abril de 1964 –seu pastoreio pernambucano, assim, é inaugurado sob as labaredas vivas da ditadura imposta ao país há apenas doze dias.
Interessante essa conjunção de destinos, disjuntos: um padre libertário assumindo o sólio secular olidense, na hora extrema em que o chão da pátria, em brasa, movia-se para dobrar, em sua história, uma esquina esperançosa de justiça e paz. E aquele padreco-bispo, logo em Pernambuco, solo fecundado com o sangue de frei Amor Divino. Pernambuco de gente valente, praieira e sertã, em 64 tão vítima dos golpistas de março, porque terra de desafinadores do coro dos contentes (TN): M. Arraes, F. Julião, P. Freire, J. Castro, A. Suassuna.
Parece que ali pousara padre Helder naquele instante como que para ecoar a voz e temperar os signos da militância desses líderes e de milhões de deserdados comuns na hora em que o ferrão das oligarquias lhes calava covardemente a fala. Helder não ergueu este papel, em si e para si, mas seria desde então um dos maiores obstáculos a que a Ditadura obscurantista de 64 consumasse suas iniqüidades contra as liberdades; aniquilasse os amigos dos pobres.
Que armas usou abrindo caminhos à liberdade? “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei a vocês”: a palavra do evangelho cristão semeada entre o povo, germinando em ação real e frutificando além da retórica pregada do ambão.
O regime militar e as oligarquias reiteradas, daqui e dalhures, estremeciam ante o exemplo dele, pequeno-grande padre de fala mansa, naquele instante em que as batinas pretas das catedrais de ouro ficavam brancas sob a luz, mãe da vida.
Aliás, canhões e bombas traduzem o poder dos fracos. Em Teresina, na posse de Falcão, Helder deixou vazia, com graça, a mão oficial que se levantara a levar sua maleta; e foi, bispo vermelho, dizer missa na Vermelha, na vermelhidão matutina.