16/02/2009

Um duplo desastre no Vaticano: de governo e de comunicação

Este é o balanço da suspensão da excomunhão dos quatro bispos lefebvristas. A reportagem é de Sandro Magister publicada no jornal Espresso, 4-02-2009. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS



Alguns dias após os fatos, a suspensão da excomunhão dos quatro bispos lefebvristas se revela, no Vaticano, mais como um grave duplo erro: de governo e de comunicação. No meio do grave erro o Papa Bento XVI se viu como o mais exposto, praticamente só.

Dentro e fora da Cúria são numerosos os que jogam a culpa de tudo no Papa. Com efeito, foi sua, do Papa Bento XVI, a decisão de oferecer aos bispos lefebvristas um gesto de benevolência. A suspensão da excomunhão era a continuação de outros gestos anteriores de abertura, também estes desejados pessoalmente pelo Papa, o último dos quais foi o Motu Proprio Summorum Pontificum, de 17 de julho de 2007, que libera o rito antigo da missa.

Como antes, desta vez Bento XVI também não quis nada em troca, previamente. As suas foram até agora aberturas unilaterais. Os críticos do Papa incidiram sobre esse ponto para acusá-lo de ingenuidade, ou de ter cedido, ou inclusive de querer levar a Igreja de volta ao tempo anterior ao Concílio Vaticano II.

Na realidade, a intenção de Bento XVI foi explicada por ele mesmo com absoluta clareza num dos principais discursos de seu Pontificado, aquele lido na Cúria romana no dia 22 de dezembro de 2005. Naquele discurso o Papa Ratzinger sustenta que o Vaticano II não marcava nenhuma ruptura com a tradição da Igreja, pelo contrário, estava em continuidade com a tradição também ali onde parecia marcar um sobressalto em relação ao passado, como por exemplo, quando reconhecia a liberdade religiosa como direito inalienável de cada pessoa.

Com esse discurso, Bento XVI falava a todo o povo católico. Mas, ao mesmo tempo, também aos lefebvristas, aos quais indicava a via mestra para resolver o cisma e regressar à unidade com a Igreja nos pontos por eles contestados: não só a liberdade religiosa, mas também a liturgia, o ecumenismo, a relação com o judaísmo e as outras religiões.

Em todos estes pontos, depois do Concílio Vaticano II os lefebvristas se haviam separado da Igreja católica progressivamente. Em 1975, a Fraternidade Sacerdotal São Pio X – a estrutura na qual se haviam organizado – não obedeceu à ordem de se dissolver e se constituiu em Igreja paralela, com seus próprios bispos, sacerdotes, seminários. Em 1976, o fundador, o arcebispo Marcel Lefebvre, foi suspenso “a divinis”. Em 1988, a excomunhão de Lefebvre e quatro novos bispos ordenados por ele sem a autorização do Papa – por sua vez suspensos “a divinis” – foi o ato culminante de um cisma já em curso há anos.

A suspensão desta excomunhão de fato não resolveu o cisma entre Roma e os lefebvristas, assim como a suspensão das excomunhões entre Roma e o patriarcado de Constantinopla – decidida em 7 de dezembro por Paulo VI e Atenágoras – de fato não marcou o retorno à unidade entre a Igreja católica e as Igrejas ortodoxas do Oriente. Num e noutro caso, a excomunhão suspensa pretendia somente servir como um primeiro passo para recompensar o cisma, que ainda persiste.

Como confirmação disto existe uma nota do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos, emitida em 24 de agosto de 1996. Nela se lê que a excomunhão de 1988 dos bispos lefebvristas “constituiu a consumação de uma progressiva situação global de índole cismática” e que “enquanto não houver mudanças que levem ao restabelecimento da necessária ‘communio hierarchica’, todo o movimento lefebvrista deve ser considerado cismático”.

Este era o estado dos fatos sobre os quais interveio a decisão de Bento XVI de suspender a excomunhão dos quatro bispos lefebvristas.

Mas, de tudo isso pouco ou nada se lê ou se entende no decreto emanado pela Santa Sé no dia 24 de janeiro. Na “vulgata” difundida pela imprensa, com este decreto a Igreja de Roma simplesmente acolhia no próprio seio os lefebvristas.

* * *

A notória ressonância de uma entrevista de um dos quatro bispos agraciados, o inglês Richard Williamson, que sustentava teses negacionistas sobre o Holocausto, veio para agravar a questão.

A entrevista foi gravada por uma TV sueca em 1º de novembro de 2008, mas foi transmitida no dia 21 de janeiro, mesmo dia em que no Vaticano foi assinado o decreto de suspensão da excomunhão de Williamson e dos outros três bispos lefebvristas.

Na imprensa de todo o mundo a notícia se converteu na seguinte: o Papa absolve da excomunhão e acolhe na Igreja um bispo negacionista.

A tempestade que se desatou foi tremenda. Do mundo judaico, mas não só, houve incontáveis protestos. No Vaticano, se correu para remediar a situação de várias maneiras, com declarações e artigos publicados no L’Osservatore Romano. A polêmica se atenuou só depois que Bento XVI interveio pessoalmente, com dois esclarecimentos lidos no final da audiência geral da quarta-feira, 28 de janeiro: uma sobre os lefebvristas e sobre o seu dever de “reconhecimento do Magistério e da autoridade do Papa e do Concílio Vaticano II” e outra sobre o Holocausto.

A pergunta natural que surge é a seguinte: tudo isso não poderia ter sido evitado, uma vez tomada a decisão do Papa de suspender a excomunhão dos bispos lefebvristas? Ou o desastre foi fruto de erros e omissões dos homens que deveriam encaminhar as decisões do Papa? Os fatos se inclinam pela segunda hipótese.

O decreto de suspensão da excomunhão tem a assinatura do Cardeal Giovanni Battista Re, Prefeito da Congregação para os Bispos. Outro Cardeal, Darío Castrillón Hoyos, é o presidente da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei que se ocupa, desde a sua constituição, em 1988, com os seguidores de Lefebvre. Tanto um como o outro declararam ter sido tomados de surpresa, com fatos consumados, pela entrevista do bispo Williamson e de não ter nunca sabido de que fora um contumaz negador do Holocausto.

Mas um exame aprofundado do perfil pessoal de Williamson e dos outros três bispos não era acaso o primeiro dever de ofício dos dois cardeais? Que não o tenham feito parece imperdoável. Tal exame não era nem sequer difícil. Williamson nunca escondeu sua aversão ao judaísmo. Defendeu publicamente a autenticidade dos “Protocolos dos Sábios de Sião”. Em 1989, no Canadá, esteve a ponto de ser processado por ter exaltado os livros de um autor negacionista, Ernst Zundel. Depois do 11 de setembro de 2001 aderiu às teses de complô para explicar a queda das Torres Gêmeas. Bastava um clic no Google para encontrar estes antecedentes.

Outra grave falha compete ao Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos. A recomposição do cisma com os lefebvristas faz parte, logicamente, de suas competências, que compreendem também as relações entre a Igreja e o judaísmo. Mas o Cardeal que o preside, Walter Kasper, disse ter sido mantido fora das deliberações, coisa tanto mais surpreendente quando a emissão do decreto de suspensão da excomunhão ocorreu durante a semana anual de oração pela unidade dos cristãos e a poucos dias da jornada mundial de memória do Holocausto.

Há mais. Também se apresenta inteiramente deficiente o lançamento midiático da decisão. A Sala da Imprensa do Vaticano se limitou, no sábado, 24 de janeiro, a distribuir o texto do decreto, apesar de que há alguns dias já existiam claros indícios da mesma e de que sobre ela estava se armando a polêmica provocada pelas declarações negacionistas de Williamson.

Há uma comparação iluminadora. No dia anterior, 23 de janeiro, a mesma Sala de Imprensa havia organizado com grande pompa o lançamento do canal televisivo vaticano no YouTube. E poucos dias depois, 29 de janeiro, teria lançado, sempre com grande envolvimento de pessoas e meios de comunicação, um Congresso Internacional sobre Galileu Galilei programado para final de maio. Em ambos os casos, o objetivo era transmitir aos meios de comunicação o sentido autêntico de uma e outra iniciativa.

Nada parecido foi feito para o decreto referente aos bispos lefebvristas, que, no entanto, contava com todos os elementos para merecer um lançamento adequado. E também os tempos eram os justos. Estava em andamento a semana da oração pela unidade dos cristãos; era iminente a jornada pelo diálogo entre católicos e judeus. O Cardeal Kasper, o responsável máximo da Cúria em ambos os setores, teria sido a pessoa ideal para apresentar o decreto, enquadrá-lo na persistente situação de cisma, indicar a finalidade da suspensão da excomunhão, recapitular os pontos sobre os quais os lefebvristas estavam sendo chamados a reconsiderar suas posições, partindo da aceitação plena do Concílio Vaticano II até a superação do antijudaísmo que defendem. Quanto a Williamson, não teria sido difícil cincunscrever seu caso: mantendo-se firme em suas aberrantes teses negacionistas, ele mesmo se negaria ao gesto de “misericórdia” do Papa.

Bem, se nada disso ocorreu, não foi por culpa da Sala da Imprensa vaticana e de seu Diretor, o jesuíta Federico Lombardi, mas dos diferentes Dicastérios da Cúria das quais recebem as indicações. Dicastérios que se remetem à Secretaria de Estado.

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De Paulo VI em diante, a Secretaria de Estado é o órgão máximo e o motor da máquina curial. Tem acesso direto ao Papa e governa a execução de cada uma de suas decisões. Confia-as aos Dicastérios competentes e coordena o trabalho dos mesmos.

Pois, em toda a situação da suspensão da excomunhão dos bispos lefebvristas o Secretário de Estado, Cardeal Tarcisio Bertone, sempre muito ativo e loquaz, se distinguiu por sua ausência.

Seu primeiro comentário público sobre a questão se deu no dia 28 de janeiro, à margem de um Congresso romano no qual era conferencista. Mas, mais que as palavras, faltaram de sua parte as ações adequadas à importância da questão. Antes, durante e depois da emissão do decreto.

Bento XVI foi deixado praticamente sozinho e a Cúria foi abandonada à desordem.

Já está à vista de todos que o Papa Ratzinger renunciou à reforma da Cúria. Mas se colocava a hipótese de que ele tivesse suprido esta sua decisão confiando a guia dos Dicastérios a um secretário de Estado dinâmico e de pulso, Bertone.

Hoje, também esta hipótese se revela defeituosa. Com Bertone, a Cúria parece mais desordenada que antes, talvez também porque ele nunca tivesse se dedicado inteiramente a resolver os seus problemas. Bertone desenvolve grande parte de sua atividade não dentro dos muros vaticanos, mas fora, num incessante giro de conferências, celebrações e inaugurações. Suas viagens ao exterior são frequentes e cheias de encontros e de discursos como as de João Paulo II em plena saúde: de 15 a 19 de janeiro esteve no México e por estes dias está de viagem pela Espanha. Em consequência, o trabalho que as oficinas da secretaria de Estado dedicam a estas suas atividades externas é trabalho que se subtrai ao do Papa. Ou às vezes é uma inútil duplicação: por exemplo, quando Bertone tem um discurso sobre o mesmo tema e no mesmo auditório ao qual logo depois o Papa falará, com os jornalistas pontualmente à caça das diferenças entre ambos.

A devoção pessoal de Bertone a Bento XVI está fora de qualquer cogitação. O mesmo não acontece com outros responsáveis da Cúria, que continuam tendo campo livre. Pode ser que alguns sejam conscientemente contrários a este Pontificado. Certamente, a maioria simplesmente não o entende, não está à sua altura.