Homenagem da Cáritas Nordeste II a D. Helder Camara, por ocasião dos cem anos do seu nascimento.
Introdução
Estamos para inaugurar o Ano Centenário de D. Helder. É uma iniciativa que chega carregada de simbolismo, e prenhe de esperança.
O Ano Centenário se destina a resgatar a memória de D. Helder, a força do seu testemunho, o vigor do seu profetismo.
O seu grande exemplo de cidadão do mundo e de apóstolo da Igreja de Cristo!
Para personagens de dimensão histórica, a roupagem adequada é a dos séculos. No contexto do século que acolheu a existência de D. Helder emerge melhor sua grandeza e a atualidade do grande legado que ele nos deixou.
1- Os sonhos de D. Helder
A grandeza de ânimo e a generosidade de espírito encontram nos sonhos a forma adequada de expressarem suas utopias.
Ao se aproximar o ano 2000, o espírito de D. Helder fervilhou de ousadia, sonhando como ele desejava ver o mundo, e como desejava ver a Igreja, no novo milênio que estava despontando.
Como Moisés, que não pôde entrar na terra prometida, e só a enxergou do alto do Monte Nebo, assim D. Helder não entrou no "novo milênio". Ele faleceu em 1999, a 27 de agosto, como todos sabemos. Deus o chamou a entrar na eternidade, antes que o alvorecer do milênio despontasse na manhã do ano 2000.
Moisés não deixou dúvidas do rumo a seguir para entrar na terra prometida. Precisamos descobrir as sendas que nos conduzem aos sonhos que D. Helder cultivou para este prosaico milênio que vem repetindo guerras e produzindo a miséria que D. Helder denunciou com tanto vigor.
Pois bem, para este novo milênio D. Helder teve dois sonhos:
Para a humanidade, UM MUNDO SEM MISÉRIA E SEM FOME
Para a Igreja: A CONVOCAÇÃO DO SEGUNDO CONCÍLIO DE JERUSALÉM!
Sonhos grandes, sonhos audazes, sonhos generosos.
Um mundo justo, solidário, fraterno.
Uma Igreja aberta ao Espírito, pobre e servidora do Reino.
No sonho para a Igreja se revela a criatividade, e a perspicácia de D. Helder, que sabia apresentar suas idéias, deixando o espaço aberto para que fossem acolhidas com inteligência e responsabilidade.
Para entender a força do sonho de um "segundo concílio de Jerusalém", é preciso saber o que significou o primeiro, descrito na Bíblia e realizado no começo da Igreja. Os apóstolos se congregaram em Jerusalém e perceberam a universalidade do Evangelho de Cristo, que precisava romper os limites estreitos do judaísmo e de quaisquer outras amarras culturais e religiosas, para ser levado a toda a humanidade, que o aguardava como terra sedenta, pronta para produzir os frutos do Reino de Deus.
Agora, um segundo "concílio de Jerusalém" implicaria a predisposição da Igreja em rever sua caminhada, e o convite ao mundo para se abrir ao Evangelho de Cristo, superando preconceitos e confrontos inúteis, e abrindo caminho para um novo tempo de reconciliação e de paz mundial.
Vamos ficar hoje à noite com estes dois sonhos de D. Helder, como senha de acesso à figura deste grande cidadão do mundo e cidadão da Igreja, que foi D. Helder.
Vamos sonhar com ele. Mas como José, queremos sentir a urgência de acordar, e de colocar mãos à obra, para os esses sonhos se tornem realidade. Assim faz sentido lembrar a figura de D. Helder.
2- Dom Helder à luz de Aparecida - Ou Aparecida à luz de D. Helder
Pareceria carecer de razão o confronto entre D. Helder e a Conferência de Aparecida, que a seguir passaremos a fazer com brevidade.
Na verdade, podemos afirmar, sem receios e sem rodeios, que em Aparecida reconhecemos preciosos frutos da Igreja da América Latina, cujas sementes foram lançadas por D. Helder.
Fazendo este confronto entre D. Helder e a Quinta Conferência do Episcopado Latinoamericano e Caribenho, tornamos viva a atuação de D. Helder, e à luz do seu testemunho potenciamos melhor a riqueza da mensagem de Aparecida, e percebemos a conveniência de termos D. Helder como referência providencial para a caminhada da Igreja em nosso continente.
ESTÁ NA HORA DE COLOCAR DOM HELDER PESSOA CAMARA COMO PADROEIRO DESTA INCOMPREENDIDA IGREJA LATINOAMERICANA, E PROCLAMÁ-LO SANTO PROTETOR DO NOSSO CONTINENTE.
3- O sábio arquiteto da Igreja Latino Americana
Quando mergulhamos nos meandros das Conferências Latino Americanas, encontramos D. Helder presente em todas as esquinas, percorrendo todos os corredores.
As Conferências Gerais do Episcopado Latino Americano sinalizam a caminhada histórica da Igreja Latinoamericana, e nesta caminhada D. Helder deixou suas marcas que são reconhecidas com muita clareza.
Particularmente, a Conferência de Aparecida se assemelha à Conferência de Medellín. Ambas significaram, respectivamente, a consciência da importância da caminhada própria que a Igreja de nosso continente precisava fazer, e a consciência da retomada desta caminhada, como aconteceu em Aparecida.
A Conferência de Medellín foi fermentada já durante a realização do Concílio Vaticano Segundo. Foi D. Helder, junto com D. Larrain do Chile, que reiteradas vezes colocaram ao Papa Paulo VI a necessidade de trazer o Concílio para a América Latina, adaptando-o à realidade do nosso continente, através de uma "Conferência Geral do seu Episcopado", de que já tinham tido uma primeira experiência na Conferência do Rio de Janeiro em 1955.
Medellín foi imaginada por D. Helder e por D. Larrain. Com certeza, D. Helder terá vibrado de alegria celeste, ao ver que Aparecida retomou os caminhos de Medellín!
Mas é importante assinalar outro fato decisivo, ao recordamos as "Conferências Gerais Latino Americanas". Elas não teriam sido possíveis, se não contassem providencialmente com uma estrutura que as viabilizou. Sem a criação da CNBB em 1952, e a criação do CELAM em 1955, não teria havido o suporte indispensável para a realização destes eventos eclesiais.
E aí identificamos a importância providencial de D. Helder. Foi ele que intuiu a fundação da CNBB, em 1952. Ele a imaginou a partir de sua atuação junto à Ação Católica Brasileira.
E foi de novo D. Helder, junto com D. Larrain do Chile, que arquitetaram o CELAM, fundado em 1955, por ocasião do Congresso Eucarístico Internacional no Rio de Janeiro, que propiciou a realização da primeira Conferência Geral.
Hoje à noite nos cabe aqui recordar outra importante iniciativa de D. Helder, a fundação da Cáritas Brasileira, a 12 de novembro de 1956.
Em 1952 a CNBB, em 1955 o CELAM, em 1956 a Cáritas!
Assim, como São Paulo, ele poderia dizer: "Como sábio arquiteto, coloquei os fundamentos. Agora outro constrói sobre eles. Mas veja cada um como constrói" (1Cor 3, 10).
Estas iniciativas de D. Helder tiveram repercussões muito além do que à primeira vista possa parecer.
A Igreja no Brasil e a Igreja na América Latina foram as únicas que entraram no Concílio com uma estrutura adequada para acolher as suas propostas de renovação.
Pelas suas Conferências Gerais, a Igreja da América Latina foi a única que abraçou o Concílio de maneira orgânica e global. E nisto D. Helder tem muitos méritos.
4- O espírito de D. Helder em Aparecida
Mesmo relativizando as semelhanças, poderíamos imaginar em quem D. Helder "incorporou" o seu espírito em Aparecida. Os santos, com certeza, têm sua liberdade de atuação nos acontecimentos humanos, que precisam de sua intercessão. Não cabe a nós descobrir estes segredos.
Mas, em homenagem ao amigo chileno D. Larrain, recordamos a eficiente e sensata articulação feita em Aparecida pelo Presidente do CELAM, o cardeal Errasuris. E se nós brasileiros evocássemos a figura de D. Luciano, que também já não estava mais em Aparecida, poderíamos recordar outro jesuíta, o Cardeal Bergoglio, de Buenos Aires, que também soube conduzir muito bem o seu ofício de coordenador da comissão de redação, coisa que D. Luciano fez de maneira exímia em Puebla e Santo Domingo.
Mas, mais do que estas semelhanças externas, podemos agora, com brevidade, identificar coincidências fecundas entre D. Helder e Aparecida, associando as grandes intuições de Aparecida com os grandes sonhos de D. Helder.
5- Intuições de Aparecida e sonhos de D. Helder
5.1. Primeira intuição: o tema de Aparecida: Discípulos e missionários de Jesus Cristo
O sonho de D. Helder: retomar o impulso original do Evangelho de Jesus Cristo.
A Conferência de Aparecida começou acertando o passo com a oportunidade do tema escolhido. Ele, na verdade, expressa a síntese dinâmica do Evangelho. O que foi que fez Jesus? Ele chamou discípulos, que transformou em missionários do seu Evangelho.
Com certeza, D. Helder, se vivo fosse, estaria vibrado de entusiasmo com este tema de Aparecida. Pois coincide em cheio com seu sonho de retornar ao vigor e à força da Igreja Primitiva.
Mesmo sem o encanto da utopia do "Segundo Concílio de Jerusalém", Aparecida não deixa de ser uma concretização verdadeira do sonho de D. Helder. Talvez Aparecida não chegou a Jerusalém. Mas não há dúvida de que ela aponta para a sua direção!
5.2. Segunda intuição: A Igreja a serviço da vida
Outra riqueza fecunda de Aparecida, foi desdobrar o seu tema central, dando-lhe uma finalidade surpreendente: a conseqüência do seguimento e da missão dos cristãos deve ser a vida dos povos!
Ora, esta intuição bate de cheio com o sonho de D. Helder, de um mundo justo, e de uma Igreja a serviço da vida de todos.
É bom perceber como os sonhos ousados podem encontrar terreno firme e propício para se concretizarem.
5.3. A retomada da identidade própria da Igreja da América Latina e do Caribe
Esta é outra das intuições fundamentais de Aparecida. Retomar e reafirmar a validade da caminhada própria da Igreja Latinoamericana. Vale a pena citar a passagem que a reafirma de maneira clara e contundente:
"A Quinta Conferência do Episcopado Latino Americano e Caribenho é novo passo no caminho da Igreja, especialmente a partir do Concílio Vaticano II. Ela dá continuidade, e ao mesmo tempo recapitula o caminho de fidelidade, renovação e evangelização da Igreja latino-americana ao serviço dos seus povos, que se expressou oportunamente nas Conferências Gerais anteriores..." (DA 9).
Pois bem, a vida toda de D. Helder encarna esta causa de afirmação da identidade própria da Igreja Latino Americana, como fruto da fecundidade do Evangelho, que suscita por toda parte novas expressões eclesiais, em sintonia profunda com a inesgotável graça de Deus.
5.4. Retomada da renovação eclesial iniciada pelo Concílio Vaticano II
De maneira muito oportuna, a Conferência de Aparecida reafirmou a validade, e a urgência, da renovação eclesial desencadeada pelo Vaticano II:
"fiel à Igreja de sempre, (a Igreja Latino Americana prosseguirá) a renovação iniciada pelo Concílio Vaticano II, impulsionada pelas Conferências Gerais anteriores, e para assegurar o rosto latino americano e caribenho de nossa Igreja..."(DA n. 100 h).
Pensando agora em D. Helder, é evidente a coincidência de sua vida com esta causa lembrada por Aparecida. Ele soube mais que ninguém valorizar o Concílio, que ele vivenciou como uma graça excepcional, a quem dedicou o melhor de sua atuação.
5.5. A reafirmação da opção preferencial pelos pobres (DA 391-398)
A Conferência de Aparecida não só reafirmou a opção preferencial pelos pobres, como o fez de maneira tranqüila e bem fundamentada, como se pode deduzir desta breve citação:
"A opção preferencial pelos pobres é uma das peculiaridades que marcam a fisionomia da Igreja latino americana e caribenha." (DA, n. 391.
"A opção pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para nos enriquecer com sua pobreza" (DA n. 32)
D. Helder foi um dos signatários do "Pacto das Catacumbas", através do qual, dezenas de bispos se comprometiam a abandonar todos os sinais de ostentação episcopal, e viver pobremente, a serviço do Evangelho. D. Helder viveu este compromisso de maneira coerente e emocionante. Viveu pobre, e morreu pobre, para edificação de todos nós.
5.6. As Comunidades Eclesiais de Base (DA 178-179).
Temos aqui outra pérola de Aparecida, a afirmação clara e serena da importância das CEBs.:
"elas recolhem a experiência das primeiras comunidades, como estão descritas nos Atos dos Apóstolos, (Cfr At 2, 42,47. Medellín reconheceu nelas uma célula inicial de estruturação eclesial e foco de evangelização (DA 178).
A atuação pastoral de D. Helder era coerente com seu sonho de reviver hoje a mesma experiência de comunhão eclesial realizada pelas comunidades da Igreja Primitiva.
5.7. A recuperação do método Ver, Julgar e Agir
Foi surpreendente constatar o que Aparecida conseguiu: reverter o desvio de rota praticado pela Conferência de Santo Domingo, que tinha abandonado o método, que Aparecida retoma e justifica:
"Em continuidade com as Conferências Geais anteriores do Episcopado Latino americano, este documento faz uso do método "ver, julgar e agir"... este método tem colaborado para que vivamos mais intensamente nossa vocação e missão na Igreja: tem enriquecido nosso trabalho teológico e pastoral, e em geral tem-nos motivado a assumir nossas responsabilidades diante das situações concretas de nosso continente." (DA n. 19).
Podemos imaginar o entusiasmo que teria tomado conta de D. Helder ao constatar que o método que ele tinha visto dar tantos frutos na Ação Católica era agora retomado, com convicção, pela Igreja Latinoamericana.
5.8. A Igreja toda em estado de missão
Para concluir, podemos citar ainda esta outra grande intuição, e decisão assumida em Aparecida: uma Igreja voltada para fora de si mesma, ao serviço da missão que Cristo lhe confiou:
"Este despertar missionário, na forma de Missão Continental... procurará colocar a Igreja em estado permanente de missão... Recobremos, portanto o ‘fervor espiritual’. Conservemos a doce e confortadora alegria de evangelizar... recuperemos o ardor e a audácia apostólicos". (DA n. 551).
Se colocássemos estas palavras na boca de D. Helder, sentiríamos como elas sairiam direto do seu coração, em plena coincidência com o Espírito Santo que as iluminou para serem assumidas pela Conferência de Aparecida.
Conclusão
A conferência de Aparecida nos mostra como os sonhos de D. Helder ainda continuam vivos em nossa Igreja. A lembrança dele nos ajuda a perceber como podemos colocar em prática estes sonhos.
O Ano Centenário se destina a recuperar a memória de D. Helder, mostrando quanto ela ainda é oportuna.
Fonte: ADITAL