02/02/2009

Santa Teresa d’Ávila, uma serenata em forma de ficção

Transverberação de Santa Teresa, escultura de Gian Lorenzo Bernini
(Foto: Google)


"Teresa, mon amour" não é apenas o título do último livro de Julia Kristeva [1] (Donzelli Editore, 628 páginas, 35 euros): é o refrão que o atravessa, quase como se todo o livro fosse uma canção, uma longa serenata que a autora dedica à santa espanhola, ao seu êxtase. Na capa, of course, a Transverberação de Santa Teresa [2], de Gian Lorenzo Bernini. Logo, compreendemos que a aproximação será lacaniana, devedora da máxima vibração barroca que liberta até o mármore da famosa escultura. A reportagem é de Nadia Fusini, publicada no jornal La Repubblica, 27-01-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Fonte: UNISINOS



E não por acaso Jacques Lacan escolheu o mesmo grupo marmóreo para a capa do seu seminário Encore do ano acadêmico 1972-73, no qual, no capítulo sexto, recomendava-se a quem quisesse entender o amor divino e o gozo místico ir a Roma e contemplar a estátua de Bernini. Olhem-na e verão, afirmava Lacan, verão que ela sente prazer! Não há dúvida. E do que ela sente prazer? Do que os místicos e as místicas sentem prazer? Até o século passado, até Charcot, até Freud, dir-se-ia que era uma questão puramente sexual, energia libídica repreendida, e assim por diante.

Não, diz Lacan, não é uma questão de transar ou não. Há mais. Nesse caso, há uma verdadeira passagem à ex-istência, uma passagem para aquele “ex”, para aquele “fora” que serve de prefixo para a palavra êx-tase.

Em milhares de variações, Julia Kristeva retoma o motivo lacaniano, entrelaçando o delírio mística à dimensão imaginativa e à escrita, e, nessa última versão, enquanto escritora, torna “sua” a santa. Literalmente, se apropria dela. Identifica-se. Uma vez adotada essa chave – a verdadeira êxtase é a escrita – não se quer muito estabelecer uma estrita afinidade entre a santa e a escritora. Tanto mais que Teresa, além de santa e escritora e fundadora, foi intérprete e analista da alma.

Para dar mais brilho à serenata, o hino a Teresa é confiado a um alterego, como Sylvia Leclercq, psicoterapeuta, obsessionada, possuída pela santa, em torno à qual monta a sua ficção, ficção pós-moderna, mais do que realmente literatura, porque só no registro de uma bulímica assimilação, que procede por períodos temporais e cruzamentos espaciais, Sylvia parece conseguir compreender a vida da santa. Se Sylvia lê com paixão as obras de Teresa, é para compreender a si mesma, as mulheres de hoje que encontra na terapia. E se exalta a certas afinidades que entrevê. É menos sensível às diferenças.

O termo ficção agrada à erudita doutora de Linguística e Semiótica Julia Kristeva, que nessa sua obra se esforça ao máximo para tornar contemporâneo o seu sujeito, graças também a uma escrita que se quer veloz, de jargões. E concede-se usos modais que, por meio de gírias, nos apresentam Teresa como “um big-bang feito mulher” (p. 588); enquanto que, para descrever à sua religiosa confiança em Deus, recorre à expressão “fazer uma TAC [tomografia axial computadorizada] do mistério do Senhor” (p. 274).

Abundam as alusões à ideia da rede. Internet e default são termos que se repetem. E os cursos de Derrida e de Kristeva na Columbia University são citados como ocasiões únicas para os poucos privilegiados que os frequentaram para penetrar, ou melhor, desconstruir os mistérios da rede que, exatamente, conectaria os místicos e os kamikazes. A nebulosa mística se expande assim em névoa religiosa, e abrem-se aos leques os delicados temas da atualidade, entre os quais se sobrepõem os problemas do fanatismo e o da fé: com Teresa sempre no centro de encruzilhadas de pensamentos e de concepções de si ou do mundo que mudam, que veem-na ao lado de Montaigne, de Spinoza, de Cervantes. Teresa expoente sublime do Século de Ouro. E garota de hoje, “runaway girl”. Como Louise Bourgeois [3]. Como Julia Kristeva. Todas mulheres capazes de se dar um outro pai, uma outra pátria. E de se tornarem conhecidas!

Nesse sentido, "Teresa mon amour" é uma “instalação” (p.577). E talvez justamente esse termo descreve melhor esse estranho livro muito longo, interessante quando se apresenta como “uma aventura no coração do crer” (p. 565). Menos, quando reduz essa aventura a uma explicação da vida humana toda – seja barroca, seja contemporânea, seja mística, seja mundana – em uma chave de paráfrases atualizadoras traduzidas em termos psicanalíticos da própria vida.

A propósito da escrita teresiana, Kristeva fala de uma “escrita fora do gênero, porque mistura tudo” (p. 311). Assim ela fará aqui, transportada não pelo êxtase, mas por uma espécie de “hybris” intelectual que certamente não lhe falta, faz-se una e trina: autora, narradora, protagonista do relato, que é, ao mesmo tempo, uma biografia, uma autobiografia, um ensaio, uma ficção. Enfim, um monumento à diva Julia.

Notas:

1. Julia Kristeva (1941-) é uma filósofa búlgara-francesa, crítica literária, psicanalista, feminista, e, mais recentemente, romancista, que viveu na França desde meados dos anos 1960. Kristeva se tornou influente na análise crítica internacional, cultural e teoria feminista após publicar o seu primeiro livro Semeiotikè em 1969. Juntamente com Barthes, Todorov, Lévi-Strauss, Lacan, Foucault e Althusser, ela permanece como uma das principais estruturalistas. [voltar ao texto]

2. Transverberação (do latim “trans verberatio”, deixar passar, transpassar de lado a lado), na hagiografia católica, é a experiência mística atribuída a alguns fiéis que teriam sido feridos pela intervenção sobrenatural de Deus. Entre os casos mais célebres, está o de Santa Teresa d'Ávila, cujo coração teria sido transpassado durante um êxtase por um anjo com uma flecha de fogo. Os estigmas são considerados frutos da transverberação. [voltar ao texto]

3. Louise Bourgeois (1911-) é uma artista e escultora francesa fortemente influenciada pelo surrealismo. Os seus trabalhos tendem a ser abstratos e altamente simbólicos, e estão presentes em vários espetáculos e coleções permanentes em museus ou galerias pelo mundo fora. Uma de suas obras é Maman, uma aranha de bronze com nove metros de altura, instalada hoje em frente à National Gallery do Canadá.