18/04/2009

Não existe um Jesus zumbi'. O Vaticano e o Pe. Roger Haight

Este é o último semestre em que Roger Haight, padre jesuíta e professor, irá lecionar no seminário da União Teológica dos Estados Unidos. Nesta entrevista, um de seus alunos conta a história da censura de Haight por parte da Igreja e explica por que isso tem importância. A reportagem é de Jason VonWachenfeldt, publicada no sítio Religion Dispatches, 10-04-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Em 1999, a editora Orbis Books publicou o livro "Jesus Symbol of God" [publicado em português pelas Paulinas, com o título "Jesus, Símbolo de Deus"], um livro do teólogo sistemático Roger Haight, S.J. Antes que o ano terminasse, Haight foi avisado de que ele e o seu livro estavam sob investigação por parte do Vaticano. Ele foi avisado que, enquanto o inquérito estivesse ocorrendo, não poderia ensinar na universidade jesuíta em que estava dando aulas nem em nenhuma outra universidade católica. A investigação durou mais de cinco anos, durante os quais o Vaticano enviou objeções a pontos específicos nos escritos de Haight, e ele, por sua vez, defendeu suas posições. Houve duas rodadas desse tipo, e, a cada vez, suas respostas foram consideradas insatisfatórias. Esse resultado foi, de certa forma, inevitável: o Vaticano insistiu em uma repetição da linguagem teológica antiga, e o projeto de Haight estava pensado para um contexto intelectual atual. Em março de 2005, declarou-se que ele não podia ser mais um teólogo católico e proibiram-lhe de ensinar teologia católica – o que significa efetivamente que ele estava proibido de ensinar em uma instituição católica até que usasse a linguagem prescrita. Naquele momento, ele ficou no Union Theological Seminary, uma instituição ecumênica, durante um ano, mas Roma manteve a pressão sobre Haight. A medida mais recente, anunciada no ano passado, decretou que ele não pode mais ensinar em nenhum lugar nem publicar, mesmo que lhe seja permitido cumprir o seu contrato com o seminário para o ano acadêmico de 2008-2009. Também, foi-lhe permitido publicar na área de espiritualidade, um campo emergente fora da disciplina de teologia acadêmica. Seus superiores jesuítas deram-lhe permissão para voltar para o Union Theological Seminary como professor residente, uma posição não-docente. Roger Haight não concede entrevistas que se refiram diretamente à sua atual relação com a hierarquia católica romana após a sua censura. Mas conversamos com Jeremy Kirk, um aluno de Haight no Union Theological Seminary. Sob a direção de Haight, Kirk completou uma análise em profundidade dos dois trabalhos cristológicos de Haight para a sua dissertação de mestrado. Kirk, agora candidato ao doutorado em ética social cristã, fundou um grupo de leitura que está focado na cristologia de Haight, que irá se encontrar em Nova Iorque para dar início ao seu terceiro ano consecutivo em maio. A seguinte entrevista busca tratar mais profundamente das questões referentes ao caso e sobre o que isso significa para a teologia católica como um todo.


Em primeiro lugar, quais são, em resumo, as questões centrais na controvérsia sobre o trabalho de Haight?

Isso depende de a quem você pergunta. Se perguntar ao Papa Bento, que, enquanto cardeal Joseph Ratzinger, desempenhou um papel central na censura de Haight, ele indicaria diversos "graves erros doutrinais" em "Jesus, Símbolo de Deus", no que se refere, em primeiro lugar, à sua carência de afirmar que Jesus é o logos, ou a palavra pré-existente de Deus. Dessa crítica básica, Haight foi culpado por ter rebaixado a divindade e a função soteriológica de Jesus. Mas essa crítica minimiza e descaracteriza a discussão de Haight. Roma realmente rejeitou qualquer afirmação de que a crença no pluralismo das religiões, dentro ou fora do catolicismo, é válida e, por isso, merecedora de atenção teológica e eclesiástica.

"Jesus, Símbolo de Deus" trata das críticas pós-modernas ao cristianismo, que são de preocupação dos católicos norte-americanos. Haight afirmava a contínua relevância do cristianismo no contexto social e filosófico contemporâneo que apresentou tais desafios à legitimidade de certas reivindicações cristãs tradicionais. A falta de respostas adequadas a esse desafio resultou em muitas pessoas que deixaram a Igreja. Haight se vê respondendo à crítica razoável com uma resposta razoável – ele estava fazendo o que se supunha que ele deveria fazer como padre e como teólogo.

De acordo com Haight, Jesus era Deus?

Haight iria rejeitar essa questão. A doutrina de Jesus é: "Deus e o ser humano", ambos "humanos e divinos". Só a cristologia que é dialética pode ser adequada e verdadeiramente fiel à tradição, como foi articulado em Calcedônia. A doutrina sustenta esses dois pontos juntos, em tensão dialética, e essa tensão não pode ser resolvida – nisso repousa o profundo mistério. Para Haight, a doutrina corresponde a e se expressa onde o cristão se acha existencialmente – a saber, em uma relação com Deus por meio de Jesus e não por meio de Buda, nem por meio de Moisés, nem por meio de outro símbolo. Os cristãos são aqueles que, pela fé, permitiram que Jesus fosse o seu acesso para Deus. Isso eleva Jesus implicitamente a uma mediação privilegiada de Deus para o cristão, mesmo que possam haver outras.

O que Haight diria que foi a ressurreição de Jesus?

Haight diria que a ressurreição só pode ser entendida desde um ponto de vista pessoal. Ela começa com as nossas esperanças com relação à nossa própria morte e as mortes dos nossos entes queridos. A esperança comum é a de que nós não morremos, mas continuamos existindo na esfera de Deus. A compreensão da ressurreição de Jesus só pode começar a partir da base da esperança.

A partir disso, Haight afirmaria que a ressurreição não foi um evento histórico que aconteceu física e empiricamente no continuum espaço-tempo. Quando os cristãos enterram um ente querido, eles colocam o corpo na terra com a fé-esperança de que a pessoa está ressuscitada de uma forma que não nega a historicidade do enterro físico. Haight afirmaria que o corpo de Jesus não foi para nenhum lugar. Não é a ressurreição de um cadáver. Não existe um Jesus zumbi.

Haight acentuaria que a ressurreição é uma ideia difícil de ser entendida porque nós não temos um referente sensorial. Sempre que falamos sobre coisas deste mundo, temos uma imaginação que trabalha em nossa ajuda. Mas com a ressurreição, a imaginação falha e na verdade começa a trabalhar contra nós. Então, assim que você a imagina, você faz dela algo incrível, um tipo de evento deste mundo. Você dá substância visual e tangível à ressurreição. Então, a questão de dizer que ela não foi um evento histórico é para assegurar que a ressurreição é uma realidade transcendente que é uma questão de fé e de esperança.

Como Haight respodeu, pessoalmente, à censura inicial?

Ele ficou surpreso. Ele certamente não esperava uma resposta como essa de Roma. Haight tem um grande respeito por argumentos razoáveis, e o livro "Jesus, Símbolo de Deus" é um argumento claro, razoável. A Congregação para a Doutrina da Fé (CDF – o organismo magisterial oficial do Vaticano) publicou um documento oficial condenando o livro de Haight, mas não é uma crítica substancial. O próprio documento não receberia uma boa avaliação para uma seleção de mestrado em teologia. Essa e outras críticas feitas sobre o livro normalmente não são convincentes porque se baseiam em suposições outras do que sobre as quais o livro foi escrito – os críticos não parecem acreditar que o fato de responder às críticas pós-modernas ao cristianismo seja uma empresa teológica digna.

Você diz que Haight ficou surpreso com o caso, mas ele certamente deve ter tido alguma ideia de que o seu projeto cristológico corria o risco de receber algumas respostas punitivas por parte de Roma. Poderíamos argumentar que o livro não era consoante com as reivindicações cristológicas anteriores feitas pela CDF naquele momento.

Em primeiro lugar, eu faria uma distinção entre o que Haight diz em "Jesus, Símbolo de Deus" e como o que ele disse pode ser usado por outros estudiosos. O livro é uma discussão sobre como a fé cristã pode responder a certas críticas contemporâneas da fé e da tradição cristãs. Não é uma discussão sobre a relativização de todas as crenças religiosas. A cristologia de Haight não é radicalmente externa ao contexto da dramática resposta da CDF. Ele se dirige a certas críticas ao cristianismo (principalmente às que se referem ao pluralismo) como um fiel teólogo cristão enraizado na tradição cristã. Ele é um monoteísta e acredita que não há um meio maior para a experiência do Deus inefável do que a pessoa de Jesus, compreendido e comunicado pelas escrituras, pela tradição e pela Igreja cristã. O poder institucional por trás das censuras da CDF parece obscurecer esses fatos.

Mas, respondendo diretamente a sua questão, eu suporia que Haight não pensou em termos de risco. Ele pensou em termos do que ele achava que devia ser dito à luz da condição da Igreja contemporânea. Haight vê as pessoas deixando a Igreja simplesmente porque ninguém está respondendo às suas questões. Suas considerações eram dirigidas a essas pessoas, não aos riscos. Além disso, a editora Orbis pediu a ele que escrevesse o livro. Ele estava respondendo àquilo que ele percebeu como uma necessidade entre os fiéis, e a sua percepção ecoou por meio de uma grande companhia editorial que solicitou oficialmente que ele as respondesse. Se os teólogos pensassem primeiramente em termos de risco, ficariam paralizados.

Por que Haight tem estado tão quieto depois da sua censura? Por que ele não se defendeu publicamente?

Defender a si mesmo em tais situações seria interpretado como egocentrismo, o que, em certa medida, sempre é. Eu acho que Haight percebeu que a tarefa da sua defesa devia ser responsabilidade de outros. Ele não é um "teólogo renegado", apesar de ter sido inapropriadamente caracterizado dessa forma desde a sua censura. Além disso, o que ele poderia dizer que ele já não tenha dito nos dois volumes de cristologia?

Eu li que Haight estava chateado por não ter tido a oportunidade de se dirigir pessoalmente à CDF com relação às suas acusações – uma oportunidade que ele esperava receber. O que ele gostaria de ter feito se tivesse sido chamado à Roma?

Eu acho que ele só gostaria de dar um rosto ao texto. Eu acho que ele queria que a CDF visse que este era um ser humano de fé, um cristão e um católico que estava gerando essas discussões em nome dos fiéis e da Igreja institucional. Eu também fico pensando se Haight não teria percebido uma vantagem em prolongar o processo de censura. Naquele momento, todo mundo assumiu que a posse de um novo Papa certamente seria uma vantagem para o seu caso. Claro, agora nós sabemos que não foi assim, porque Ratzinger, o advogado de acusação no caso contra Haight, acabou se tornando o novo Papa.

Como Haight se sente com relação à hierarquia da Igreja Católica Romana?

Bem, acima de tudo, eu diria que ele pensa que a hierarquia da Igreja é algo bom. Haight quer que a Igreja tenha uma autoridade moral ao se engajar social e politicamente no mundo. A hierarquia é necessária para uma grande instituição como a Igreja. Se você está se referindo aos ocupantes atuais e particulares das posições dentro da hierarquia, eu acho que ele expressaria um desapontamento extremo. Haight reafirma os objetivos do Vaticano II, que acentuou o ecumenismo e afirmou a importância dos leigos na Igreja. O papado atual e o anterior eram restauracionistas. Eles claramente cercearam os documentos do Concílio e estão procurando colocar de volta no lugar o que havia antes do Vaticano II.

Mas enquanto Haight provavelmente expressaria pessimismo com relação aos danos causados pelos dois últimos papas, eu acredito que ele manifestaria otimismo com relação aos leigos. Se você olhar o catolicismo romano desde o começo, você vai ver um novo laicado culto. O corpo inteiro dos teólogos nos EUA será predominantemente formado por leigos, 80-90%, em poucos anos, e 65% desse corpo será de mulheres – será uma experiência completamente nova para a Igreja católica. Os leigos hoje estão conduzindo algumas paróquias com um padre que desempenha algumas funções especializadas. Há uma energia dinâmica totalmente nova na Igreja Católica Romana quando você a vê desde baixo.

Quando você a olha de cima, vê sinais de declínio. Se considerarmos o número de pessoas nos seminários, a qualidade dessas pessoas nos seminários e as suas inclinações, não parece nada promissor. Quando você olha o episcopado e a oferta de possíveis candidatos, parece catastrófico. Eu acho que Haight reconheceria uma dialética como a existente entre o que os oficiais poderosos e conservadores em particular visam atingir e a força irrefreável dos leigos que constituem, em primeiro lugar, aquilo que definimos como "a Igreja".

Por que Haight permanece católico?

Dizem que quando essa pergunta foi feita à teóloga feminista Ivone Gebara, ela respondeu: "Porque as mulheres que estão morrendo ao meu redor são católicas". Eu acho que, para Haight, a resposta é a mesma, mas em um contexto menos dramático. Ele continua católico porque ele é católico. Ele assume a responsabilidade pelas necessidades daqueles que estão ao seu redor e extrai a sua identidade da sua relação com eles. Haight escreveu "Jesus, Símbolo de Deus" como uma resposta às necessidades dos católicos. Por que ele deveria abandoná-los depois de ter recebido uma crítica de baixo nível?

Haight também valoriza a comunhão dos católicos como Igreja. Nesse sentido, ele e Bento são parecidos. Eles só têm prescrições opostas sobre como manter essa comunhão unida. O Papa nega a existência do pluralismo, enquanto Haight vê a adoção do pluralismo (uma realidade indisputável) como uma forma de tornar o cristianismo ainda mais efetivo na compreensão do que significa ser humano neste momento particular da história. Haight encorajaria qualquer pessoa que se sinta enganado por seu catolicismo a ir aonde quer que seja necessário ir para se alimentar espiritualmente. Ao mesmo tempo, para ele, assumir a responsabilidade por sua própria comunidade é uma maneira de descobrir valor e identidade dentro da própria Igreja, que é exatamente o que algumas pessoas estão procurando ao deixar o catolicismo.

Finalmente, Jeremy, o que está mais em jogo, na sua opinião, na controvérsia sobre o trabalho de Roger Haight?

Eu tenho 31 anos. Eu acho que a minha geração e as gerações subsequentes estão crescendo com um sentido mais inato dos desafios pós-modernos e historicistas às teologias cristãs modernas e pré-modernas. Diferentemente de Haight que, desde um ponto de vista moderno, buscou tratar dos desafios da consciência pós-moderna, as pessoas da minha geração têm que fazer uma escolha diferente. Nós temos que ou tratar de uma consciência pós-moderna do pluralismo desde o começo, ou temos que negar o que a sociedade crescentemente considera como realidade de um modo geral, assim como o cristianismo fundamentalista faz.

A necessidade de reconhecer o pluralismo não vai diminuir em um mundo cada vez mais globalizado e interdependente que enfrenta crises cada vez mais complexas e coletivas. Se o cristianismo ainda pode atuar como uma fonte para a reflexão ética à luz das crises históricas (o que eu confio profundamente que ele consegue), ele deve ser honesto e confiável para este contexto globalizado e pluralista contemporâneo.

Teólogos como Haight estão fazendo o trabalho que irá manter o catolicismo relevante nos contextos contemporâneos em particular, mas isso ocorre com um custo de eles serem desaprovados e rejeitados por partes das mesmas igrejas que eles procuram servir. Um colega no Union Theological Seminary, Sarosh Koshy, descreveu a Igreja como um barco, e o teólogo como alguém que, periodicamente, tem que sair do barco e empurrá-lo para fora de um banco de areia. Às vezes, ao fazer isso, o teólogo é deixado para trás. Esse é o caso, neste momento, de Haight. Mas considerando o impacto do seu trabalho, eu não acho que ele esteja sozinho nesse banco de areia. Não com tantos de nós que estão tentando unir-se a ele.

Fonte: UNISINOS

Os grifos são meus.